

''O QUE EU ENCONTREI FOI UMA CERTA PERFORMANCE DO USO DO HÁBITO, MUITAS VEZES
COMO UMAS FORMA DE RESISTÊNCIA''
CAROLINE JACQUES CUBAS
O sotaque influenciado pela cultura açoriana dá um charme especial à fala da historiadora Caroline Jacques Cubas. Caroline leciona na Universidade do Estado de Santa Catarina e é autora da tese de doutorado, defendida em 2013, que se tornou um livro: Do Hábito à Resistência – Freiras em Tempos de Ditadura Militar no Brasil. A obra ganhou o Prêmio de Pesquisa Memórias Reveladas, de 2014. É um estudo inédito sob a perspectiva da participação de religiosas na luta contra a violência perpetrada pela ditadura civil-militar, de 1964 a 1985. A entrevista com a professora é justamente sobre essa obra e os caminhos que a levaram a estudar esse tema.
Caroline, você é historiadora, professora de História na Universidade do Estado de Santa Catarina e vinculada ao Departamento de História. Você trabalha junto ao Programa de Pós-Graduação em História e no Mestrado Profissional em Ensino de História, certo?
Isso, nosso trabalho ele está muito direcionado a pesquisa e a formação de professores. A minha formação toda é em História. Fiz a graduação na Universidade do Vale do Itajaí com pós-graduação em História para Ensino Fundamental pela UDESC - Universidade do Estado de Santa Catarina e mestrado e doutorado em História pela Universidade Federal de Santa Catarina. Então, a minha formação toda é realizada em três universidades do Estado de Santa Catarina, sempre na área de história e desde 2005, mais precisamente, desenvolvendo pesquisa a respeito da vida religiosa feminina. Na minha especialização, eu comecei a desenvolver um pequeno trabalho sobre formação religiosa. Não tinha necessariamente relação com a ditadura, mas era um trabalho ancorado no recorte temporal da ditadura. Então eu trabalhava já naquele momento com os anos 60, 70 e 80, porque a intenção do trabalho era entender o processo de formação religiosa, como as mulheres tornavam-se freiras num momento de bastante mudança e alteração e transformação dentro da própria Igreja Católica, que foi o momento do Concílio Vaticano II. Eu trabalhei a Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição e a partir de uma série de documentos provenientes da própria Igreja, da congregação, algumas entrevistas, entender um pouco esse processo formativo. Esse foi o tema da minha especialização. Eu segui com esse tema no mestrado e trabalhando com vida religiosa no doutorado, mas aí sim, com um encaminhamento diferente, que eu saio da formação e eu passo para a ação. Então, a ação dessas religiosas durante a ditadura militar no Brasil. a relação entre as religiosas e a ditadura ela começa especificamente no doutorado em 2010 e é uma pesquisa que já tem os seus 14 anos, para que eu a realizo durante o doutorado, mas com o fim do doutorado vem a minha efetivação na UDESC como professora, e a gente mantém projetos de pesquisa na carreira docente.
Quais são esses projetos de pesquisa?
Eu tenho um sobre o ensino de História e um outro que segue sobre a questão da atuação das religiosas em movimentos de resistência, ou seja, de oposição à ditadura militar no Brasil. E inclusive, foi esse o tema também que me levou agora, em 2024, a realização de um pós-doutorado na França junto ao Instituto de Altos Estudos sobre a América Latina, em Paris, continuando a trabalhar com o acervo de congregações religiosas femininas, congregações francesas que tinham casas no Brasil, na tentativa de entender um pouco os vínculos das relações e as trocas entre essas religiosas que estavam na França com aquelas que estavam no Brasil, que pertenciam a uma mesma congregação, mas que viviam momentos bastante distintos em termos políticos. A ida para França foi para observar um pouco essas trocas transnacionais.
O tema do hábito ao ato começa em que momento dos seus estudos?
Digamos que ele é atravessado por coisas que vêm já do meu mestrado e da minha especialização, porque quando eu trabalho com a questão da formação religiosa na especialização e no mestrado, um dos temas que foram abordados na dissertação é justamente essa questão do hábito, da roupa, da vestimenta. Mas naquele momento eu não tinha feito uma leitura do hábito com relação à ditadura militar. Eu estava pensando estritamente o significado dessa vestimenta para a formação religiosa. Então, para aquelas mulheres que naqueles anos 60, naqueles anos 70, estavam passando por um processo formativo, o que significava ou não significava usar o hábito religioso. O livro Do hábito à Resistência ele recupera essas discussões, mas ele amplia essas discussões pensando esse debate no âmbito da ditadura militar. Então, o que eu encontrei foi uma certa performance do uso do hábito, muitas vezes como uma forma de resistência, na medida em que ele possibilitava algumas ações que passavam a princípio desapercebidas. Depois, elas começaram a ser bastante observadas, mas a princípio desapercebidas porque as freiras elas tinham no início assim uma certa insuspeição, que durou pouco tempo, eu devo dizer. Mas, de início, o uso do hábito possibilita algumas coisas. Mas essa leitura é uma leitura do doutorado. Então é uma leitura que vem a partir de 2010. Por quê? Porque o meu doutorado é realizado na UFES, que, junto ao Laboratório de Estudos de Gênero, orientado pela professora Cristina Scheibe Wolff, que é uma especialista em debates de resistência à ditadura militar e às questões de gênero durante a ditadura. O meu ingresso no laboratório, a orientação da professora Cristina e as minhas leituras sobre vida religiosa feminina, elas acabaram culminando nessa reflexão sobre a participação das religiosas em movimentos de resistência e oposição à ditadura. O livro Do Hábito à Resistência é proveniente da tese de doutorado.
Caroline, qual a diferença da formação da religiosa em relação a um religioso? Pergunto isso porque conversei com várias freiras, e ainda hoje persiste a ideia de que a freira deve servir ao padre, passar a batina, preparar a comida. O que mudou depois do Concílio Vaticano II, iniciado pelo papa João XXIII em 1962 e encerrado pelo papa Paulo VI em 1965?
Então, o Concílio durou uns quatro anos e são várias reuniões realizadas para debater questões essenciais, questões eclesiológicas, teológicas, institucionais, administrativas dentro da Igreja Católica. A questão é que mesmo antes da convocação do Concílio, muitas transformações já vinham acontecendo; muitas religiosas já vinham desenvolvendo ações que fugiam justamente desse papel da religiosa a serviço do padre. A gente tem, por exemplo, em Santa Catarina, congregações que já nos anos 40, nos anos 50, trabalhavam com assistência social, que já tinham as suas ações um pouco mais, não independentes, não autônomas, mas com uma característica própria da congregação. Um trabalho realizado por aquelas mulheres. Desde o final do século XIX, a gente tem congregações religiosas femininas, no Brasil também, responsáveis por colégios e por grandes institutos de educação, por grandes hospitais, por grandes escolas de serviço social. O que eu quero dizer com isso? O que eu quero dizer é que a vida religiosa feminina é bastante diversa, na verdade, e essa formação ela difere de congregação para congregação.
Quais são essas diferenças?
Eu me deparei agora na França (2024) com os arquivos de uma congregação religiosa, que é a Notre Dame de Sion, que inclusive tem colégios em São Paulo e Rio de Janeiro, e nos documentos a respeito dessa congregação, quando a gente se depara com aquilo que era os conteúdos estudados durante o processo formativo, eles são bastante amplos, bastante diversos. Então, assim, não é apenas a questão teológica e religiosa, mas tinha leituras a respeito de ciências sociais, leituras de história; elas tinham, podemos dizer assim, uma consciência política a respeito do que significava a Igreja dentro da sociedade, do papel das religiosas em sociedade, da tarefa delas, da responsabilidade delas ao terem uma escola, ao coordenarem uma escola. Não é um processo uníssono, elas não estudam a mesma coisa em todas as congregações. Depende muito da vocação da congregação. Então, se a gente está falando de uma congregação onde as religiosas são mais reclusas, é uma formação a mulheres que vão viver nessa reclusão, uma experiência voltada ao recolhimento, à leitura, à oração, à manutenção de suas casas. O que difere enormemente daquelas congregações que têm uma ação voltada à educação, porque elas vão ter que se preparar para isso. Se é uma congregação cuja vocação é a educação, a administração de escolas, é o acolhimento, elas precisam conhecer pedagogia, elas vão ler os
pedagogos, as pedagogas, elas vão ler os debates da filosofia da educação. Então, dependendo da vocação da congregação, esses estudos vão ganhar direcionamentos distintos. Uma outra congregação que eu visitei agora também esse ano (2024), eu pude ver um pequeno museu da congregação, uma congregação cuja fundação se dá no final do século XIX, e nesse museu elas conseguiram conservar os livros que elas liam durante a formação no final do século XIX, início do século XX. E é bastante surpreendente porque a gente encontra os clássicos da literatura, textos de filosofia, muita coisa de teologia. É interessante a gente saber que isso está presente na formação das religiosas; não é só porque algumas congregações, dependendo de onde elas se estabelecem, não é porque elas estavam a serviço dos padres, que é um pouco essa a tua experiência, aquelas que tu conheceste, isso não quer dizer que elas não tiveram todo o processo formativo anterior. Aquela função que elas desempenham muitas vezes tem relação com os votos, tem relação com a condição feminina da religiosa diante da Igreja, que também está sendo debatida frequentemente, mas isso não quer dizer que elas não tenham toda uma formação anterior marcada por muita disciplina, marcada por muito estudo, marcada pela necessidade de consciência do que é ser uma religiosa, da relação das religiosas com os religiosos, o papel delas para a Igreja diante da Igreja, o papel delas diante da sociedade, tudo isso. Mas seria preciso, para responder precisamente, seria necessário pensar nas especificidades de cada congregação. Então, muitas vezes o conteúdo da formação está vinculado à vocação da própria congregação.
Você estudou no colégio de freiras e no seu mestrado seu foco foi a Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição. Por quê?
Em primeiro lugar porque foi a congregação que administrava o colégio no qual eu estudei, que é o Colégio São José de Itajaí; foi ali que eu tive contato desde a mais tenra infância com a história de Madre Paulina (1865 – 1942); com as religiosas que trabalhavam na escola na época. Isso no final da década de 80, da década de 90. Naquele momento o Concílio Vaticano II já aconteceu, uma série de debates no âmbito da Igreja Católica já aconteceram. A gente não está mais nos anos 60, quando da convocação do Concílio, as transformações são o resultado de mudanças. Mas ainda assim a gente tem tanto as religiosas que trabalhavam com vestes civis quanto religiosas que usavam o hábito completo. Quando eu fui fazer a graduação em História e quando fui fazer uma especialização eu conheci uma das colegas da minha turma que hoje é uma amiga, ela fez parte do seu processo formativo nessa congregação, ela não chegou a ser religiosa. Com a aproximação dessa colega, ela acabou contando, compartilhando várias coisas vividas durante o processo formativo, inclusive ela compartilhou material, documento, livros que elas liam e estudavam, e isso meio que foi o escopo da minha volta às religiosas, não mais como aluna, mas sim como pesquisadora. Então, no mestrado, eu me dedico à Congregação das Irmãs da Imaculada Conceição, em função do acesso aos acervos; uma das congregações religiosas femininas estabelecidas em Itajaí, que a cidade onde eu morava, então tinha uma questão territorial também, que depois eu precisei repensar, porque a formação das religiosas, ela nunca acontece em apenas um lugar, elas transitam, a formação é num lugar; o aspirantado noutro lugar e o postulantado em outro lugar; elas vivem em diferentes espaços e isso nos faz pensar a respeito das limitações territoriais. Então, no mestrado, fiz a escolha por essa congregação que dirige colégios e hospitais. No caso do doutorado, eu não trabalho com uma congregação específica. Eu trabalho com casos, digamos assim, com pessoas, com eventos
Caroline, eu gostaria que você falasse sobre o hábito, não somente como rotina, mas o simbolismo dessa vestimenta das religiosas, que foi o objeto do seu estudo no mestrado.
É, tem um ditado que é muito conhecido, que é aquele que o hábito não faz o monge. E eu acho que o disparador da reflexão talvez tenha sido esse dito popular. Essa discussão ela me é muito cara porque, em primeiro lugar, na dissertação, ela aconteceu através de entrevistas, prioritariamente, onde algumas pessoas contavam suas relações com religiosas que usavam ou não usavam o hábito religioso. No mestrado, o que eu pude perceber era justamente o peso que essa vestimenta tinha em termos de significação para a vida religiosa e em que medida que uma determinada ideia de vida religiosa feminina estava atrelada ao uso ou não do hábito religioso. E a questão é muito curiosa porque a gente teve, no final do século XIX, uma onda migratória muito grande de congregações estrangeiras que vieram para cá; e essas congregações religiosas estrangeiras, maciçamente europeias, tinham uma experiência climática muito diferente da nossa. Então, muitas vezes os hábitos eles eram muito pesados, eles eram muito quentes, então eles eram absolutamente inadequados para o trabalho desenvolvido no Brasil e ainda assim, durante muitos anos foram mantidos em função desse peso secular, dessa simbologia, desse significado e da maneira como o uso do hábito representava a indumentária que caracterizava uma mulher como uma religiosa. Nos anos 60, com o Concílio Vaticano II, há todo um debate sobre a necessidade de atualização da Igreja. E existe, claro, todo um debate anterior a questão da modernidade, uma grande preocupação com o número de fiéis que começa a diminuir, tanto que a Igreja precisa se reaproximar desses fiéis e uma maneira de se reaproximar seria através do trabalho de religiosas e religiosos, mas que muitas vezes o uso dessa vestimenta ou o uso do hábito, ao invés de aproximar, afastava, porque se criava uma relação de distanciamento, se criava uma relação de respeito e a relação que a gente queria agora era de aproximação.
A opção pelo uso de roupas, digamos, civis diminuiu esse distanciamento?
Esse é um dos pontos. A gente tem aí o início de todo um processo de simplificação dessa vestimenta. Ao invés de ser todo aquele hábito, as congregações começam a elaborar os seus novos hábitos, as suas novas vestimentas, que se aproximariam cada vez mais das vestes civis. Então o uso de saias e camisas é basicamente o que foi adotado pelas congregações. Só que a questão é que para as pessoas que observavam esse processo, isso nem sempre foi compreendido da mesma maneira, as intenções da Igreja não foram imediatamente compreendidas, então, por exemplo, eu fiz uma entrevista com um senhor que na época tinha 85 ou 87 anos, isso em 2005, e ele contou uma história muito engraçada. Ele disse que uma vez ele estava no ônibus, ele morava numa cidade do interior de Santa Catarina, e no ônibus entraram duas moças que ele sabia que eram religiosas, mas que elas não estavam usando o hábito, usavam as vestes civis, e daí ele disse que um grupo de meninos começou a mexer com elas, começou a fazer piadinhas, começou a brincar, começou a provocar aquelas duas moças e daí ele disse que ele começou a ficar irritado e que ele pensou em intervir, mas que na verdade ele não fez porque ele não podia fazer nada, porque elas não estavam usando o hábito. Então, como que ele podia fazer alguma coisa e dizer que elas eram religiosas se elas não estavam se apresentando como religiosas? A gente percebe assim que para algumas pessoas a leitura foi que muito mais do que todo o processo formativo, muito mais do que todo o trabalho desempenhado, o que caracterizava uma religiosa era o hábito. E é por isso que gerou tanta tensão esse abandono gradativo do hábito religioso. Essa tensão se deu tanto com as pessoas que conviviam com religiosas, quanto no debate gigantesco, que daí é um pouco o que eu trago para tese, isso não trabalhei na dissertação e sim na tese, que é um debate que acontece nos jornais, em revistas. Tem uma reportagem que foi publicada pela revista Veja (“A nova vida da freira”, publicada pela revista Veja em 13 de agosto de 1969), falando das transformações na vida religiosa feminina e na reportagem eles colocam lado a lado duas fotos, uma foto de religiosas usando o hábito e uma outra foto da religiosa operária, com vestes civis. A discussão ganhou tanta visibilidade que ela acabou parando nas revistas, nos jornais, posicionamentos de pessoas da igreja, de arcebispos, de bispos, mas membros também da sociedade civil e que que criticavam essa possibilidade de abandono do hábito religioso justamente pelo que ele significava.
Quais eram as críticas ao abandono do hábito?
A gente começa a ter coisas muito curiosas assim, que são irônicas, mas que refletem um pouco da atenção dada a esse processo. Nos jornais eu encontrei, por exemplo, um editorial falando que aconteceria um desfile de moda de mini medievais que eram vestidos feitos para mulheres não religiosas, mas que imitavam o hábito religioso, só que de minissaia. E daí a brincadeira é “ah, as religiosas querem usar as ‘nossas roupas’, nós vamos usar as roupas delas”. Então
fizeram uma leitura de minissaia, de um hábito religioso; ou então de congregações que teriam contratado costureiros caríssimos para desenhar as suas novas vestimentas. A gente tem uma série de entradas nos jornais nos anos 60, nos anos 70 também, mas especialmente ali nos anos 60, trazendo à tona toda essa problemática em torno do hábito religioso. Qual a leitura que a gente faz disso? É a leitura do simbolismo e do significado, a leitura de uma certa preocupação em relação a esse novo posicionamento da Igreja Católica diante da sociedade; a essa abertura da Igreja Católica diante da sociedade. Daí, claro, o que começa a se anunciar e a se mostrar são posicionamentos distintos em relação à sociedade e ao próprio catolicismo. A gente tem posicionamentos bastantes arraigados a uma ideia de catolicismo tradicional e a gente tem ideias que classificaríamos como mais progressistas, mais preocupados com esse reposicionamento da Igreja diante da sociedade, entendiam que esse reposicionamento passava por uma transformação das vestes, por uma transformação de hábitos. O título Do hábito à Resistência, no livro, ele é uma adaptação do título da tese que é Do hábito ao ato. E daí é uma brincadeira de fato, com a coisa do hábito, vestimenta, mas também um determinado hábito, uma determinada imagem que se fazia do que era a vida religiosa, com as ações perpetradas por essas religiosas que a gente começa a observar mais fortemente a partir dos anos 60. O hábito ele está bastante presente nessa leitura que faço da vida religiosa feminina em função do grande poder simbólico que ele exercia para a sociedade civil, para a Igreja Católica e também, claro, para as religiosas, porque a gente encontra religiosas que não se colocam pacificamente em relação a esse debate, assim como algumas se engajam nessa mudança, assumem o trabalho social, assumem, digamos, uma percepção talvez mais progressista de Igreja; a gente tem outras mulheres que não pensam da mesma forma. A gente tem religiosas que continuam achando que a vida religiosa tem os seus sentidos representados pelo uso do hábito e não é tão fácil assim deixar de usar, né? É um conflito que se coloca socialmente, institucionalmente e subjetivamente também para muitas mulheres e a gente não pode desconsiderar isso.
O hábito era uma forma de limitar o “ser” religiosa diferente do “ser” leiga, mas era também uma forma de invisibilidade, usado como uma “proteção” do corpo da mulher religiosa?
Sim, é interessante porque a gente tem a possibilidade aqui de fazer várias leituras. A primeira delas, essa da marcação do religioso, da religiosa, porque o religioso também usava batina. O termo que a gente pode usar é a necessidade de se estabelecer uma distinção entre aqueles que pertencem ao corpo da Igreja Católica e aqueles que não pertencem. Por isso, o elemento visual que permitiria a todos e todas a perceber essa distinção é o mais evidente é a roupa, é o hábito. Além disso, claro que a gente precisa pensar que o hábito religioso feminino ele
traz consigo também uma intenção de cuidado com o corpo, de não marcar o corpo. Essa distinção do hábito religioso faz com que se reconheçam as religiosas como religiosas e, ao mesmo tempo, não é um apartamento, mas um certo controle do corpo religioso feminino. Isso é bastante evidente. Essa necessidade, essa intenção de controle e essa intencionalidade de distinção. Isso se coloca de uma forma muito forte às vezes também.
O problema da Igreja é em relação à sexualidade?
Isso, exatamente. Então, é algo que é que é bastante evidente, temos isso muito fortemente através dos séculos. O que me parece muito interessante de ser pensado é de que maneira muitas vezes as religiosas, e daí, fazendo um salto talvez para os anos 60, como que elas conseguiram implementar outros usos a esse hábito que subvertem essa ideia do controle dos corpos.
Por exemplo?
É, me chama muito a atenção algumas fotos que foram publicadas no Jornal do Brasil, quando da Marcha dos 100 mil (1968), e nessas fotos a gente vê uma série de passeatas, e nessas passeatas a gente tem religiosas com hábitos, segurando placas, se manifestando ali na junto aos padres e à sociedade civil. Por que isso chama a atenção? Bem, em função da representação simbólica, em função da força da visualidade. Quando a gente vê essas fotos, é imediata a identificação de que tinham freiras na passeata. Se elas estivessem usando os trajes civis, elas também estariam presentes na passeata, mas aquele que olha a foto, aquele que vê a imagem, necessariamente não reconheceria elas como religiosas. Então, ali elas estão marcando uma posição como religiosas. Não é apenas a mulher que está ali, não é apenas o indivíduo, é o indivíduo que faz parte de um corpo maior, e esse corpo maior é uma congregação religiosa, é uma instituição. Elas não estão apenas ali falando por elas mesmas. Elas estão marcando uma posição e mostrando que a instituição Igreja Católica, de alguma maneira, está presente naquela manifestação. E o outro uso que subverte um pouco a ideia do controle, foi que durante a ditadura militar, e isso foram depoimentos, de que maneira elas usavam o hábito para fazer coisas e passar despercebida. Eu conversei com uma religiosa que contava que ela levava bilhetinhos de diferentes espaços do Brasil e esses bilhetinhos já tinham relação com a questão da ditadura militar, na tentativa de ajudar pessoas a fugir do Brasil. E como elas estavam de hábito, elas dificilmente eram revistadas, porque no início, ali nos anos 64, 65, 66, a participação da Igreja Católica na oposição à ditadura, ela já acontecia, mas talvez não de uma forma tão enfática, como depois. Então, elas muitas vezes usaram do hábito religioso justamente como uma possibilidade de subverter a imagem que se teria a respeito delas. Então, a imagem de uma religiosa que ia usar o hábito foi instrumentalizada em prol de uma ação política, foi
instrumentalizada em prol de uma ação que subverte um pouco essa imagem da religiosa com a vestimenta. É muito interessante porque ao mesmo tempo que a gente tem essa roupa que demarca a diferença, que demarca a distinção, que tem a ver com o controle sobre o corpo, essa mesma vestimenta possibilita que elas disponham do seu corpo para coisas que não são necessariamente aquelas que era esperado. Então, essa dupla leitura do uso do hábito me parece bastante interessante.
O seu livro Do Hábito à Resistência é dividido em quatro capítulos.
Eu quero só explicar, antes de falar dos capítulos, um pouco do que significa esse livro em termos historiográficos. Porque nós temos muita pesquisa sólida a respeito da relação da Igreja com a ditadura militar. A gente tem muito trabalho que fala dessa relação e muitos trabalhos que falam a respeito da atuação dos padres, que falam a respeito de bispos como Paulo Evaristo Arns, que tiveram uma ação efetiva de oposição à ditadura militar. Nós temos muitos nomes conhecidos de homens da Igreja que se envolveram nesses processos de resistência, oposição à ditadura. O que é que acontece? Quando eu começo a pesquisa de doutorado, eu começo a perceber que a gente tem muitas referências de homens, mas poucas de mulheres. E isso é muito curioso, porque ao mesmo tempo em que a gente tem poucas referências de mulheres, a gente tinha muitas mulheres. No Brasil, ali, segundo dados da CRB – Conferência dos Religiosos do Brasil, se não me engano, anos 70, seguramente, a gente tinha no Brasil em torno de 7 mil padres e 42 mil religiosas. Eu comecei a achar muito estranho que dessas 40 mil mulheres nenhuma tenha se envolvido com a ditadura militar a ponto de que elas não apareçam nos textos, de que não apareçam nos livros e não apareçam nas pesquisas. E isso me chama a atenção. Então, o que acontece na minha tese? Eu parto de uma hipótese, a hipótese é de que as religiosas participaram em ações de resistência e oposição à ditadura, e eu preciso confirmar essa hipótese. A partir daí eu vou buscar casos que me mostrem que essas religiosas participaram de movimentos de resistência e oposição à ditadura militar. Por que eu estou dizendo isso? Porque na tese, diferente da dissertação, eu não aprofundo a reflexão em relação a uma congregação específica. Ou eu não trabalho com a trajetória de uma religiosa específica. Como não tínhamos nenhum texto, nenhum livro, nenhuma pesquisa sobre religiosas e ditadura, até aquele momento, o meu foi simplesmente mostrar que essas ações existiam. Hoje em dia, olhando para a minha pesquisa de doutorado, eu vejo um grande mapeamento de ações, um grande mapeamento de eventos distintos que aconteceram em diferentes regiões do Brasil e o que eles têm em comum é confirmar a minha hipótese de que as religiosas se envolveram sim em movimentos de resistência e oposição à ditadura militar.
Sua tese de doutorado e que se tornou o livro Do Hábito à Resistência é um estudo inédito no Brasil?
Sim, de certa forma ele é um estudo inédito; mas talvez o primeiro trabalho sobre religiosas no Brasil, de religiosas e ação social, não no campo da história, mas no campo da sociologia, é da professora Maria José Rosado Nunes. A professora Maria José Rosado Nunes tem um texto que hoje em dia é considerado um clássico para quem trabalha com vida religiosa feminina que se chama Freiras no Brasil, que está publicado no livro História das Mulheres no Brasil; e esse texto é um texto basilar; e ela tem também um livro a respeito de vida religiosa feminina, mas não em relação à ditadura militar. Ele trata do contexto da ditadura militar, mas ele fala muito mais da vida religiosa feminina inserida, então, desses trabalhos de inserção social, da saída dos colégios para uma ação distinta; fala um pouco dos conflitos que aconteceram nesse movimento, mas não faz uma relação com a ditadura, não faz uma relação com a resistência, não faz uma relação com engajamento político, ainda que seja um trabalho basilar, que seja um trabalho fundamental. O ineditismo do meu trabalho é fazer justamente essa relação e observar que não apenas padres e bispos se envolveram na oposição à ditadura militar, mas religiosas também. O que a gente encontra antes do meu trabalho, por exemplo, são dissertações, muitas vezes sobre escola, sobre colégio, que de alguma forma tiveram alguma passagem pela ditadura militar, e naquelas escolas e naqueles colégios havia uma religiosa que trabalhava, havia uma religiosa que dirigia, mas não havia até então nenhum trabalho que conseguisse de fato congregar informações de modo a sustentar uma tese, que a ideia da tese é essa, você sustenta uma proposição de que houve, sim, o envolvimento bastante remarcado de religiosas na resistência e oposição à ditadura militar. Então, o ineditismo da tese é isso, né? E eu consigo através desse grande mapeamento, mostrar que sim, que esse envolvimento aconteceu e daí depois a gente tem aí uma série de depoimentos que confirmam essa tese e que começam a aparecer cada vez com mais ênfase, cada vez com mais força.
Você sustenta essa tese em quatro capítulos.
O primeiro deles é mudanças de hábitos, transformações visíveis e novos sentidos para a vida religiosa feminina. E o que eu pensei assim? Eu pensei que para falar das ações das religiosas nos anos 60 e para entender a relevância dessas ações, a gente precisaria entender o que era a vida religiosa feminina nos anos 60, as transformações que afetavam essa vida religiosa feminina e buscando talvez o que a gente poderia chamar de as condições de possibilidade dessas ações, as condições de possibilidade desses envolvimentos. Eu falo um pouco sobre a questão da Igreja Católica e da vida religiosa no século XX; os documentos da Igreja Católica que regem a vida religiosa feminina no século XX. Eu trabalho um pouco com a questão do Concílio Vaticano II, as transformações, os debates em torno do Concílio Vaticano II, as transformações perpetradas por esse Concílio, o fato de que muitas das mudanças já vinham acontecendo e o Concílio efetiva essas mudanças e como que tudo isso acaba sendo publicizado através dos jornais e revistas no Brasil. Eu trabalho com fontes específicas e são fontes jornalísticas, que são os impressos, que são os periódicos e como que eles acabaram trazendo a público essas alterações que acontecem no seio da Igreja Católica no Brasil. Nesse mesmo capítulo, em função dessas transformações, uma das que ganha maior ênfase é a do hábito religioso que a gente vinha conversando, né, então, nesse capítulo eu também enfatizo essas mudanças no hábito religioso e como essas mudanças no hábito religioso nos levam a possibilidade de pensar sobre emancipação; a palavra emancipação começa a aparecer no seio da vida religiosa feminina e essa emancipação leva a uma sorte de virada social. É como se a gente institucionalizasse o fato de que agora as mulheres vão trabalhar junto à sociedade, em comunidades, vão assumir a direção de instituições; começa a ter uma maior visibilidade da ação dessas religiosas.
Uma mudança na sociedade civil também, nas mulheres, leigas?
Exatamente, exatamente, mas sempre pensando que não é um processo simples, que não é um processo pacífico, que não é um processo homogêneo. Em ambos os casos, mas especificamente entre as freiras. Se na sociedade civil a gente falar em emancipação das mulheres era um tema polêmico, ainda hoje, mas especialmente nos anos 60 e 70, a gente potencializa essas dificuldades e essas tensões quando a gente fala de Igreja Católica. Existem alas da Igreja Católica que aderem a essas transformações, mas a gente tem resistências internas. Então, dentro da própria Igreja, que passa por essas transformações, a gente tem grupos numerosos que não concordam tanto assim com essas transformações e que tecem críticas. Temos sempre que pensar que esses processos, processos históricos de uma forma geral, mas falando especificamente dessa virada social, dessa busca por novos rumos, dessas possibilidades de ação social das religiosas, é não pensar que isso foi um processo simples, que isso foi um processo homogêneo. É importante termos em vista que ao mesmo tempo em que várias congregações, que várias religiosas, assumiram essas mudanças, a gente tem tantas outras que foram pelo caminho contrário em função de suas experiências, em função de suas escolhas, em função de suas congregações. Precisamos ter o cuidado de a gente não criar uma visão generalista a respeito do contexto. Como a minha preocupação na tese era falar e era trazer a participação de religiosas na resistência contra a ditadura, é claro que a minha atenção foi voltada àquelas que se engajaram na mudança, porque são essas que eu encontro nesses movimentos de resistência e oposição de forma mais evidente. Mas ao mesmo tempo a gente tem outras que não assumiram esses mesmos movimentos e essas mesmas mudanças. É importante que a gente tenha consciência disso.
No segundo capítulo você aborda O Social, O Político O Religioso.
Nesse segundo capítulo eu começo a mostrar as relações entre a Igreja e a ditadura militar em um primeiro momento. E eu faço essa leitura ainda a partir da imprensa. Então, como que a imprensa nos anos 60 noticia a relação da Igreja com a ditadura militar; eles não chamam de ditadura militar, mas com o regime político então implementado; e nos itens seguintes eu começo a ver nessas mesmas reportagens pululando referências a religiosas que estariam aderindo a movimentos na época considerados subversivos. Os primeiros dois que eu encontro, que são uma sinalização da presença da religiosa nesses movimentos, são ações que aconteciam em espaços escolares; como que muitas vezes religiosas que dirigiam escolas, que trabalhavam em escolas, acabaram se envolvendo em ações consideradas pelo regime como subversivas? Nesse capítulo eu tenho essa atenção voltada aos espaços escolares e como que a gente consegue visualizar essa participação e esse envolvimento em passeatas. Se o primeiro fala de mudanças institucionais na Igreja Católica, o segundo fala dessa instituição e transformação em relação ao contexto sociopolítico de então e como que nesse contexto sociopolítico de então, a gente começa a observar referências a presença das religiosas junto aos religiosos, na maioria das vezes. E aqui eu destaco especificamente a questão dos espaços escolares, que foram um dos espaços onde eu encontrei veementemente ações de religiosas em relação à ditadura militar.
Freiras e a Ditadura Civil-Militar, esse é tema do terceiro capítulo.
No capítulo três, eu faço um mapeamento de ações mais efetivas, não tão visíveis, porque daí aqui a gente já começa a entrar mais no final dos anos 60 e nos anos 70. A divulgação dessas ações nos jornais começa a ficar um pouco mais complicada, portanto, eu acho isso em outras fontes e em fontes da própria Igreja Católica, em processos que foram disponibilizados pelo projeto Memórias Reveladas; em processos que foram disponibilizados pelo Projeto Brasil: Nunca Mais. Que ações são essas? Muitas vezes o acobertamento, religiosas que abrigaram pessoas que estavam fugindo, perseguidos políticos. O abrigo não era só um ato cristão, era um ato consciente, porque elas sabiam que aquilo representava um perigo e porque tinham outras religiosas que eram contrárias. Então é interessante perceber como um simples ato gera uma série de tensões no escopo da própria congregação. Houve ainda a solidariedade de religiosas que ajudaram pessoas a sair do Brasil, dando rotas de fuga. Eu faço um mapeamento também sobre a questão da divulgação, da tortura e da repressão, uma forma de resistir e fazer com que o mundo saiba do que está acontecendo. E aqui um caso a ser destacado é justamente o caso da Maria Valéria Rezende (freira e escritora), com a publicação de Cartas da Prisão, do frei Betto; é todo um trabalho de apanhado dessas cartas, organização dessas cartas e publicação, primeiro na Itália, depois no Brasil. O que deu a ver a situação que acontecia no Brasil ali no final dos anos 60 e início dos anos 70. Então a gente tem ações de religiosas que ajudaram na divulgação do que acontecia no Brasil, esses acontecimentos conseguiram transcender as fronteiras nacionais através do trabalho dessas religiosas e depois uma série de ocorrências que eu encontro sobre o envolvimento de religiosas que vão às ruas para se manifestar contra a prisão de padres, que fazem greve de fome em relação ao conhecimento de que determinada pessoa estava aprisionada, estava sendo torturada. Isso que eu chamo de lutas sociais como forma de resistir. A gente tem uma série de ações difusas de religiosas que tomam a palavra, que vão às ruas, que se manifestam de forma contrária, evidentemente, aquilo que estava acontecendo naquele contexto do país.
O caso da Madre Maurina Borges da Silveira faz parte do último capítulo?
Que é o capítulo que eu chamo de A Exacerbação da Violência. Eu abordo o caso da Madre Maurina; de outras religiosas no Além das Fronteiras Nacionais e sobre As Freiras Francesas, para mostrar que essa questão das religiosas, do envolvimento das religiosas com a ditadura militar e das violências sofridas por essas religiosas em função desse envolvimento, não se restringe ao Brasil. Eu vejo essa exacerbação da violência no caso da Madre Maurina, que não foi a única, mas o caso dela é muito singular, como vocês bem conhecem (documentário Madre, da Nuolhar, de 2024); e depois também na América Latina, especificamente um que aconteceu na Argentina, que é o de duas freiras francesas que foram aprisionadas e foram assassinadas pelo regime e que também não estavam envolvidas com militância política, mas com trabalho social que incomodava veementemente o regime então instaurado. Então, isso era suficiente para que elas fossem presas, torturadas e assassinadas.
Por que a escolha, especificamente, dessas freiras?
Quando a gente faz uma pesquisa como essa, que a gente não tem muita referência anterior, é preciso se pautar na materialidade das fontes, que são os nossos documentos, que é aquilo que possibilita a nossa reflexão, que possibilita a confirmação ou não da nossa hipótese de pesquisa. No caso da minha pesquisa, nos jornais eu encontrava uma nota de jornal e aquela nota fazia referência a uma religiosa. Eu pesquisava aquela religiosa, muitas vezes essas informações são fáceis de serem encontradas em função das próprias congregações, e outras vezes a gente simplesmente não encontra; mesma coisa em relação aos processos disponibilizados no Brasil: Nunca Mais e no Memórias Reveladas, a gente tem processos que estão à nossa disposição para pesquisa e que citam nominalmente as religiosas e que falam muitas vezes da Congregação a qual elas pertencem. Foi assim que eu cheguei à Madre Maurina. O nome dela apareceu para mim pela primeira vez nos jornais, quando eu estava fazendo as investigações sobre as religiosas durante a ditadura militar, e aí me deparei com os livros quando eu estava pesquisando. Como foi um caso muito mediatizado, a gente tem mais informações acessíveis a respeito dela do que a respeito de outras. Então ela personifica algo distinto que, na minha leitura tem uma frase do Paulo Evaristo Arns que para mim é muito importante quando ele fala a respeito do caso da Maurina, que isso mostra assim que algumas pessoas haviam dito que isso significava que até as freiras estavam envolvidas, até as freiras, quem diria? Então, o próprio caso de Madre Maurina é um caso simbólico dessa reflexão, dessa relação e dessa possibilidade de pensar que religiosas se envolveriam na luta contra a ditadura militar. Mas o nosso trabalho no campo da História é um trabalho prioritariamente investigativo, a gente não pode fazer nenhuma afirmação porque a gente acha que essa afirmação é correta, nós precisamos partir de um ponto que é hipotético e que mesmo essa hipótese, na verdade, ela não vem de lugar nenhum. Essa hipótese ela vem do estudo, da leitura, de pesquisas prévias. Ela vem de um conhecimento anterior a respeito do contexto e a respeito do objeto pesquisado que nos insinua algo. No meu caso, mesmo que eu não estivesse antes trabalhando com ditadura militar, eu sabia da existência das religiosas, eu sabia do trabalho que as religiosas desempenhavam no Brasil, da existência das Comunidades Eclesiais de Base que religiosas participavam dessas comunidades, eu sabia da relação da Igreja Católica com a ditadura militar, porque eu tenho formação histórica, algo basilar da nossa formação. Eu comecei a cogitar que talvez houvesse um hiato em relação à participação dessas mulheres, porque eu também tenho leituras de gênero na graduação, na especialização. Eu tive formação com professoras que se dedicavam a pesquisa sobre gênero. Então o meu olhar também estava um pouco mais sensível ao fato de que se tratava de mulheres e o fato de serem mulheres fizesse com que essa presença ou essa ausência na historiografia merecesse atenção. Todas essas questões anteriores da nossa formação elas contribuem na formulação da nossa hipótese. Não é uma coisa que de repente, de uma hora para outra, eu tenha uma ideia. A gente tem consciência que as pessoas não sabem como acontece o trabalho da pesquisa histórica muitas vezes. O nosso trabalho é absolutamente pautado no estudo, no conhecimento do nosso objeto. Mesmo que eu não estivesse pesquisando em 2010 sobre ditadura militar, eu tinha conhecimento a respeito do contexto da igreja suficiente que me permitisse formular essa hipótese. E daí o que a gente faz? A gente empreende a pesquisa, a gente fala com pessoas mais experientes no campo da pesquisa, a gente recorre aos nossos orientadores.
Nesse caminho o que a impressionou nessa questão de gênero foi a invisibilidade dessas mais de 40 mil religiosas, no Brasil? Todo mundo fala da Dilma Rousseff; todo mundo fala dos dominicanos, né? Eles são, sei lá, a linha de frente dessa história, mas por trás disso teve um batalhão de pessoas. Como pode essas milhares de freiras, a grande maioria trabalhando com questões sociais sensíveis num país da desigual, não serem “enxergadas”? Essa invisibilidade dessas religiosas a impressionou?
Eu lembro que quando eu comecei a elaborar esse projeto de pesquisa, um dos primeiros materiais talvez que eu usei como fundamento foi a publicação do livro Brasil: Nunca Mais, e na introdução do livro tem ali um certo quantitativo que é apresentado. E no livro, se não me falha a memória, eles falam de seis religiosas. Eles citam seis religiosas que teriam de alguma forma sofrido com a violência do regime, não tortura necessariamente, mas que ou que foram presas ou que foram perseguidas; eles não dão os nomes das seis, fala da Madre Marina, obviamente, mas eles citam seis. Depois, é claro, se tu entras na página, hoje em dia, do Brasil: Nunca Mais tu acessas os processos, tu encontras muitas outras, muitas, muitas. Mas ali, no livro, naquele momento, naquele compilado, eles chamam a atenção para a existência de seis. E daí? É isso que começou a me instigar. “Pera aí, como assim?” Pensa na extensão do Brasil, nas ações da ditadura militar no Brasil e tudo o que aconteceu no Nordeste, tudo o que aconteceu no Norte, tudo o que aconteceu no Centro-Oeste, toda a questão da terra, toda a questão indígena, e a gente sabe que justamente nesses espaços a gente tinha a participação e a presença de religiosas, né? Então, “como assim só seis? E essas mulheres religiosas que estavam envolvidas também nesses espaços, nesses lugares, com esses grupos que também sofreram com a repressão, o que aconteceu com elas? Onde é que elas estão? O que elas fizeram? Porque elas trabalhavam lá nessas comunidades. Então, isso depois a gente encontra nos processos o nome delas, o que elas fizeram, por que foram presas? E a gente percebe que elas estavam sendo vigiadas. Mas até então isso passava despercebido. A impressão que eu tenho é que isso era tratado assim: É óbvio que elas estavam lá, mas elas não eram olhadas com atenção porque a atenção estava voltada a outras ações. Há casos que foram remarcáveis, né? Há casos que acabaram sendo bastante personalizados, como o caso dos dominicanos como o frei Tito, frei Betto, Dom Hélder Câmara. A gente tem esses nomes conhecidos, que são obviamente importantes, relevantes, que são representativos do que era a Igreja no contexto da ditadura, mas a gente não pode pensar que foram os únicos que se envolveram, que foram os únicos que agiram e que foram os únicos que sofreram com aquele contexto. A minha questão foi justamente buscar essas outras pessoas e, particularmente, onde estavam essas mulheres que não apareciam nos livros que eu li até então ou apareciam de uma forma muito en passant, muito superficial. Um coletivo sem nome, sem muita especificação, sem muita problematização. E é claro que assim, essa atenção, essa preocupação, como eu falava, ela vem de um repertório formativo. No campo da história a gente tem todo um debate, toda uma atenção, a gente tem aí durante anos, campos como a história da vida privada, a história do cotidiano, a história social que nos faz justamente romper com uma pesquisa voltada apenas a grandes personagens.
Foi essa a sua preocupação em relação à Igreja Católica na ditadura?
No caso da pesquisa sobre a Igreja Católica, foi um pouco esse exercício, né, foi considerar que, além desses grandes nomes conhecidos, a gente tem aí toda uma população desconhecida, mas não menos importante, e que tiveram trabalhos absolutamente significativos, mas ainda desconhecidos. Então, o meu trabalho como pesquisadora é colocar questões primeiro onde elas estão? Por que não se fala delas? Por que esses casos são desconhecidos? Qual a relevância da participação dessas mulheres naquele contexto e no presente? O que é que essa invisibilidade nos diz a respeito do nosso presente?
Você conseguiu respostas a essas perguntas?
É isso é o que a gente persegue durante toda a pesquisa. No caso de, em termos de conclusão, falando especificamente da tese, a conclusão à qual eu cheguei, a primeira delas é que sim; a hipótese é que as freiras participaram em ações de resistência e oposição. Eu confirmo a minha hipótese e eu encontro essa participação. E daí eu faço um exercício de tentar entender um pouquinho porque a gente não encontrava isso antes. E uma das questões que para mim é uma das mais evidentes, é que o nosso olhar estava muito voltado às ações da Igreja Católica nos lugares conhecidos, onde a resistência se tornou pública, que eram os lugares que não eram frequentados pelas religiosas, mas sim pelos religiosos. A condição feminina dentro da Igreja Católica, a condição da religiosa dentro da Igreja Católica, fazia com que elas não ocupassem necessariamente os mesmos espaços que os padres, o que não quer dizer que elas não ocupavam outros. O que eu precisei fazer? Eu precisei olhar para outros espaços não tão públicos, não tão evidentes, para encontrar a participação dessas religiosas. E foi apenas fazendo esse exercício de olhar em uma outra direção que eu consigo encontrar essas ações. Então a gente percebe assim, que existe, obviamente, uma reflexão a ser realizada e que diz respeito à condição feminina, a condição da religiosa diante da Igreja Católica e que, como essa condição faz com que essas mulheres ocupem determinados espaços, o nosso olhar também, muitas vezes como pesquisador, ele é primeiramente voltado aos espaços públicos e aos nomes conhecidos. Então eu precisei fazer um exercício de olhar para diferentes espaços, para diferentes lugares, que são os espaços de atuação das religiosas. Quando a gente começa a não olhar apenas para a praça pública, para o púlpito, mas para a escola, para o espaço privado da escola, e pensar a escola como um espaço de ação, aí a gente encontra religiosas. Quando olhamos para a congregação e a casa e a gente pensar a “casa” não apenas como um espaço de convivência, mas um espaço de acobertamento, aí a gente encontra a ação de religiosas. Assim, as religiosas acabam mostrando e reafirmando aquela máxima do quanto o pessoal é político e do quanto essas ações que acontecem no espaço privado, entre aspas, elas têm uma dimensão pública por ser política, por ser de ação política.
Você citou, antes, que a freira e escritora Maria Valéria Rezende. Ela foi uma “andarilha”, trabalhou com educação popular, a linha freiriana; ajudou, como você mesma lembrou, a levar para o exterior as cartas que o frei Betto escrevia na prisão; ajudou a tirar do Brasil pessoas perseguidas politicamente. Como ela, outras religiosas realizavam ações parecidas. É realmente importante refletir que havia a “linha de frente”, mas também os “anônimos e anônimas” lutando contra a repressão aos direitos civis. Você acredita que aquelas seis religiosas, não nomeadas, citadas no livro Brasil: Nunca Mais possam ter sofrido torturas como a madre Maurina?
Não sei se essas seis, exatamente, mas eu encontrei referência a outras que passaram por tortura. Eu encontrei referências a uma religiosa, inclusive é um caso que eu cito no livro que, no final dos anos 70, ela foi pega por aquilo que eu suponho ser um comando de caça aos comunistas, que a teria levado e despido. Na verdade, eles tinham a intenção de prender uma outra religiosa que trabalhava num colégio que estaria ensinando temas subversivos, mas como eles não conseguiram prender aquela que eles queriam, eles mandaram uma série de bilhetes ameaçadores e acabaram prendendo uma colega. E essa colega foi presa, foi dopada e ela acordou desnuda sobre uma cama que parecia ser uma cama de dentista. Ela não sabia se aconteceu algo ou não, mas se tu pensares numa religiosa, acordar nessa condição, sem saber onde está, é assustador. Tem um outro caso que eu encontrei, que eu não falo no livro Do Hábito à Resistência, porque eu encontrei depois, é de uma religiosa que trabalhava com questões agrárias, a luta pela terra, junto com um padre, no centro-oeste do Brasil, e que ela teria sido presa, teria sido amarrada, ela teria marcas no pescoço de sufocamento.
A história da madre Maurina foi a que mais a impactou?
Sem dúvida! Quando me deparei com o caso da madre Maurina, eu já conhecia até onde a ditadura havia ido, até onde a violência havia ido, mas ali a gente tem quase que a materialização disso diante dos olhos, né? E daí quando eu encontro documentos, quando eu encontro a carta dela, então é um caso que se torna próximo e, ao se tornar próximo, a gente não tem como negar também que acaba mexendo conosco, que ele acaba chocando por isso que eu chamo de exacerbação de violência.
O caso das freiras francesas, na Argentina, também foi emblemático para você?
No caso das freiras francesas foi a mesma coisa. Sim, eram ações sociais, eram ações que eram motivadas pela fé, pela crença, pelo engajamento e que foram tratadas de uma forma absolutamente vil e inacreditável. As freiras francesas, foram jogadas daqueles voos da morte. É um caso que teve repercussão aqui, na França. A gente percebe como que isso faz com que a violência da ditatura ela transcenda fronteiras e faz com que a gente tome conhecimento também de outras ações nessa direção. Ações de pessoas que estavam, como a irmã Maria Valéria Rezende, envolvidas com essa necessidade de tentar fazer alguma coisa e essa alguma coisa era talvez a divulgação daquilo que acontecia, justamente porque essas violências eram inaceitáveis.
E, para os torturadores, o que também pegou foi o fato de a madre Maurina não usar hábito. Ela foi desconstruída por eles.
E daí a importância dessa leitura que eu proponho no primeiro capítulo da tese. Eu acho que é para que a gente entenda esses casos, para que a gente entenda o motivo. Porque não é apenas noticiar que uma religiosa foi presa e torturada, mas entender como que isso pôde acontecer. E ao entender como que isso pôde acontecer e que a gente tem também a consciência de que no nosso tempo coisas também podem acontecer. Porque ali a gente estava nos anos 60, num período de transformações, no período de debates, no período de modificações, mas isso não quer dizer que violências extremas não acabaram sendo perpetradas com mulheres, com homens, digamos assim, diante dos olhos de toda uma sociedade. Então, como que isso acontece? O que justificava isso para as pessoas? O que justificava isso para os algozes da ditadura? Por que o fato de uma religiosa não usar hábito era uma justificativa para tortura? O que significava esse hábito? No nosso trabalho, na pesquisa, ele tem um pouco essa dimensão, ir além do fato que a gente encontra, ir além do evento, mas entender por que que aquele evento foi possível e o que isso significava? O que isso representava naquele contexto? E como tu havia dito no início, isso nos faz pensar sempre sobre o nosso presente. Como que determinadas coisas no nosso presente acontecem, podem acontecer, como elas são possíveis e como que essa possibilidade ela precisa ser lida em sua historicidade. Então, as coisas que acontecem no nosso presente elas trazem consigo estratos de tempo. Então elas trazem consigo muito disso que a gente chama de passado, mas que é o tempo todo presentificado em determinadas ações, em determinadas relações, na maneira como a gente usa certas coisas como justificativa para os nossos atos. A História ela é muito presente. Ela é o tempo todo chamada, é o tempo todo convocada para justificar o nosso presente, para apresentar o nosso presente e para construir nossas projeções de futuro. O nosso trabalho investigativo vai um pouco nessa direção. Não é apenas estudar o passado, mas é entendê-lo, compreendê-lo, é esquadrinhá-lo e é a possibilidade de justamente tecer essas relações com o presente. Eu participo na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) de um programa de pós-graduação cuja área de concentração é justamente a história do tempo presente; e a história do tempo presente não significa falar apenas do recorte temporal que a gente chama presente, mas é justamente entender como esse presente é construído por uma série de estratos temporais que a gente chama passado e que a gente convoca o tempo todo esse passado, mesmo que inconscientemente.
O ato político e a resistência são sinônimos?
Não, não necessariamente. Ele tem muito mais a ver com a forma como a gente se posiciona perante a sociedade.
A Madre Marina não “entregou”, mesmo sob tortura, nenhum daqueles jovens ligados às Forças Armadas de Libertação Nacional (FALN) e que se reuniam no Lar Santana, em Ribeirão Preto, onde ela era diretora. Essa atitude é uma resistência política?
Na minha leitura, sim. Mas aí tem todo um outro debate sobre o que é a resistência? Porque durante muito tempo a resistência, especificamente em relação à ditadura militar, ela foi entendida apenas como a luta armada. Então, a resistência à ditadura era você participar de algum grupo de luta armada e você se posicionar publicamente contra a ditadura militar. No meu livro, eu não estou sozinha nesse tipo de pensamento, nesse tipo de reflexão, é que a gente tem outras formas de resistir, que elas são inspiradas, talvez, em toda uma bibliografia sobre a resistência civil, durante a Segunda Guerra Mundial, mas é claro que a gente tem que pensar isso no nosso contexto. A gente tem que pensar isso nas condições e nas possibilidades dentro do Brasil. Mas ainda assim, ao saber, ao ter consciência, ao ter conhecimento do que acontecia no Brasil nos anos 60, quando diante de uma determinada situação, você precisa tomar uma posição, essa posição que vai determinar a maneira como você se coloca diante do contexto político vivido. Essa resistência civil, ela não é necessariamente o engajamento, a luta armada, mas é a contestação, é a posição, é não se coadunar com esse regime político de então. É claro que a gente não pode equalizar essas formas de resistir. A gente não pode dizer, por exemplo, que entregar, não entregar, escolher não entregar os jovens que participavam ali do grupo, que é um ato igual a pegar em armas e lutar contra o regime militar. A gente não pode aplanar as coisas, mas ao mesmo tempo a gente não pode desconsiderar que foi uma decisão, que foi uma atitude e que, no caso aqui, diante de uma determinada situação, ela precisou tomar uma atitude. E o que essa atitude significa? Essa atitude pode até não ser assim “a partir desse momento eu vou tomar uma posição contra a ditadura militar”. Ninguém age dessa forma. Muitas vezes são ações até mesmo impulsivas. Muitas vezes são ações de um momento. Mas essas ações impulsivas de um momento elas sempre subsidiadas pela nossa própria experiência, pelas nossas crenças, pelas coisas nas quais acreditamos, pelas lutas anteriores que trazemos conosco. Isso me leva, sim, a pensar que, no caso da Madre Maurina, era uma forma de resistência. Talvez não contra o regime ditatorial institucionalizado, mas contra determinadas práticas daquele regime que se colocavam naquele momento. No caso dela ali, ela estava sim protegendo, né? Isso é uma forma de resistir. Ela poderia simplesmente ter entregado por achar que eles eram subversivos, ela não fez isso.
O banimento, em 1970, da madre Maurina, que não queria de jeito nenhum sair do país, a deixou em completa solidão, longe das irmãs de congregação e da família. Foi um silenciamento político e religioso?
Mostra bem uma distinção de tratamento. No livro, eu ensaio uma reflexão, mas na verdade eu preciso retomá-la, porque uma coisa que me chamou muito a atenção foi a forma como foram tratados o caso da madre Maurina e do frei Tito, como que no caso da madre Maurina a gente teve um total silenciamento e o caso do frei Tito foi o contrário. Como que teve uma repercussão enorme, apesar da maneira com como termina a história do frei Tito (Preso1968 e em 1969. Em 1971 foi banido do Brasil. Passou pelo Chile, Itália e, finalmente, França. Apesar do acompanhamento psicológico que recebeu, frei Tito se suicidou em 1974) -, mas ele pôde falar, pôde se expressar, ele pôde escrever, ele foi acolhido, ele teve todo apoio de sua congregação na França; e no caso da madre Maurina foi o silenciamento, foi não falar sobre o assunto e não deixar falar sobre o assunto.
Você acredita que foi uma escolha dela ou da congregação?
Eu creio que os dois. Eu creio que tem uma ação não apenas da congregação, mas uma ingerência da igreja, em primeiro lugar, a congregação assumindo essa orientação e ela assumindo a orientação da congregação e, claro, de todos os traumas que ela vinha vivendo. Então é muito difícil, eu imagino, muito difícil para uma pessoa religiosa naquela condição que viveu, de repente se contrapor a sua própria congregação, que era a sua casa, que era a sua vida, que era aquilo que estava sentindo às suas ações. Eu só posso imaginar, na verdade, né, quão foi difícil para ela viver no México, onde ela não queria estar, para onde ela não queria ir. A minha leitura do silêncio dela é um pouco essa. Eu creio que a gente não pode justificar apenas através de uma via, mas a gente tem que entender que existe toda uma organização institucional que determinava aquilo que deveria ou não deveria ser feito em relação ao caso da madre Maurina. O caso teve muita visibilidade, então a ideia também era tirar um pouco a madre Maurina de foco. Mas ao mesmo tempo, é inegável o trauma que ela havia sofrido.
A Maurina estava em um “não-lugar”, o “não-lugar” da fala?
Como encontrar palavras? Como falar sobre isso? Em que língua falar sobre isso? Para quem falar sobre isso? Que língua falar sobre isso? Para quem falar sobre isso?
Caroline, você é uma historiadora, pesquisadora; o que você sente quando, por exemplo, você vê a História da ditadura ser recontada por extremistas, por negacionistas? Eu tento imaginar, mas não dá nem para imaginar, o que sentem os sobreviventes que foram torturados, ou os parentes das vítimas da ditadura militar.
É revoltante, é desolador, porque a gente sabe que, sim, houve; a gente tem documentos, a gente tem provas, a gente tem a documentação que nos permite afirmar isso, para além, é óbvio, dos depoimentos e das experiências. Mas a questão é a gente ter consciência também que é que isso é um projeto, a negação da ditadura, a justificativa da tortura, como se fosse algo legítimo, já que a violência também estava sendo perpetrada por grupos de resistência, ou então que eram pessoas subversivas e, enfim, todos esses discursos que a gente vê pululando, que a gente vê circulando, eles são revoltantes, inquietantes, mas a gente tem consciência que isso tudo é um projeto político e que isso não vem de lugar algum e que isso também não é recente. Essas disputas que a gente vê que hoje em dia estão ganhando ênfase, estão ganhando espaço nas mídias sociais, nas redes que tem hoje em dia tem muito mais visibilidade, não é porque elas têm visibilidade que elas são atuais. São disputas, são projetos de país, são projetos de sociedade que permaneceram desde o final da ditadura em função do processo de transição política que a gente teve, em função do processo de anistia que aconteceu. O que a gente vê é que em alguns momentos, esses discursos e essas falas estão apaziguados, eles não aparecem e em determinados momentos eles vêm novamente para a superfície. É como se houvesse ali uma determinada conjuntura, uma determinada movimentação social que permite, que possibilita que determinadas coisas sejam ditas. E isso é o que eu acho que é o mais assustador, porque pessoas que defenderam a ditadura continuaram a existir nos anos 80, nos anos 90. O que me parece muito perturbador é que em um determinado momento no nosso presente, de uns anos para cá, isso começou a ser dito, a ser aceito, a ser normalizado. Isso é muito preocupante, porque era algo que não vinha sendo dito até então, porque era o que era uma memória que vinha sendo trabalhada pela nossa sociedade. A ditadura militar, a forma como ela terminou, a maneira como a transição aconteceu, a transição democrática aconteceu, a anistia, o fato das pessoas não terem sido condenadas, não terem sido presas, o fato de determinadas pessoas permanecerem no seio político nacional. Então a gente tem uma história muito complicada nesse sentido. E essas pessoas sempre estiveram ali. As pessoas estão encampando determinadas ideias. O Brasil Paralelo tem os seus assinantes. O Brasil Paralelo entra nas redes escolares, ainda que muitas vezes com a resistência dos professores que simplesmente não utilizam os materiais. Então a gente continua tendo resistências. Mas é bastante preocupante sim, a possibilidade de que determinadas coisas sejam ditas, a possibilidade de que as pessoas possam encampar determinadas ideias justamente porque nos anos 60 a gente viu onde elas levaram.
Como proteger a memória histórica, aquilo que de fato aconteceu no regime militar?
No caso da pesquisa histórica, eu falei para ti que eu trabalho também com formação de professores. E nesse trabalho a respeito de formação de professores, a gente observa muito a questão, por exemplo, das questões de vestibular, das discussões sobre o conteúdo de História na escola e tudo mais. E é claro que os conteúdos sobre ditadura militar me chamam muito atenção. Em alguns debates dos últimos anos sobre a escola sem partido, sobre a questão da educação de gênero, educação sexual, eu encontrei falas assim nos jornais, depreciando os estudos de gênero, depreciando a possibilidade da educação sexual, depreciando os estudos da ditadura militar que se aproximavam muito em termos discursivos, daquilo que eu encontrei nos jornais nos anos 60. E não é apenas uma cópia daquilo que estava sendo dito, é uma permanência em termos de cultura política. E isso é preocupante. A gente precisa ter a consciência dessa permanência e a consciência de onde esses atos nos levaram. É só assim que a gente vai poder lutar e se posicionar contra eles.
Essa negação das atrocidades cometidas pelos militares de alguma forma me remete à filósofa Hannah Arendt, Hannah Arendt, sobre a banalidade do mal. É assustador a quantidade de brasileiros banalizando a dor, real, de outras pessoas.
E isso para mim é o mais assustador. É perceber que isso segue, que essa banalidade do mal segue. Por exemplo, agora, depois de todas essas revelações a respeito da possibilidade de assassinato do Lula, do Alckmin e do Alexandre de Moraes; para mim é assustadora a lógica das redes sociais. Você vê determinadas pessoas que têm as suas vidas cotidianas no caso assim, normais, pessoas que você conhece, que não são pessoas ruins, entende? É isso que é complicado e que é desafiador. Não é como se fossem as pessoas do mal e as pessoas do bem. Então você tem pessoas que a gente sabe que não são pessoas de má índole, que não são criminosos, que não é uma pessoa que vai lá e vai dar um tiro na cabeça de um outro. Então essas pessoas, ao mesmo tempo em que elas têm essa vida cotidiana, elas conseguem apoiar grupos que estavam planejando esse ato e elas conseguem não romper com esses grupos e conseguem seguir nas redes sociais, talvez não apoiando necessariamente a organização do assassinato, mas as pessoas que estavam envolvidas com isso. Então é como se isso não fosse tão grave assim. É como se planejar um assassinato não fosse tão grave porque tem algo maior, que é um projeto de país, que é um projeto de sociedade. Então isso para mim é aterrorizante. É perceber como que isso continua, né? É como eu falei antes, assim às vezes muito mais silencioso e às vezes isso aparece com mais veemência.
Por isso a História é importante.
É, tem uma passagem que eu sempre volto no livro A Peste, de Albert Camus. Para mim, o último parágrafo1 desse livro é uma aula de história para pensar a respeito dessas questões, para pensar a respeito de como que determinadas coisas que a gente poderia julgar resolvidas, elas não estão terminadas, elas não estão acabadas, elas não estão resolvidas. Elas continuam a existir. Elas persistem. Só que muitas vezes elas estão ali, anestesiadas, estão ali silenciadas e basta um simples movimento, basta um simples evento para que elas voltem à superfície. Então é aquela coisa o bacilo da peste permanece. Está ali nos livros, está ali nos móveis e a qualquer momento ele pode voltar. E é um pouco isso, não é que o presente repete o passado, mas a gente precisa pensar em termos de continuidade de cultura política. E que como, sim, é isso que a gente vive hoje em dia evoca, digamos assim, esse passado recente da ditadura militar.
[1]
“Na verdade, ao ouvir os gritos de alegria que vinham da cidade, Rieux lembrava-se de que esta alegria estava sempre ameaçada. Porque ele sabia o que esta multidão eufórica ignorava e se pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada. E sabia, também, que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz.”
