
VOZES
Entre inúmeras memórias e vozes apagadas ao longo da história, estão as de mulheres que foram para a luta contra a ditadura: pegando ou não em armas, escondendo pessoas e documentos, organizando eventos, divulgando ideais contrários à repressão, batalhando por informações sobre desaparecidos, dando suporte a uma casa, a uma família, fazendo arte, escrevendo, contribuindo com causas sociais, resistindo - cada uma à sua maneira. Conheça algumas dessas mulheres.


Áurea Moretti nasceu na zona rural de São Joaquim da Barra, interior de São Paulo, no dia 12 de novembro de 1944. Depois do golpe civil-militar de 1964, já morando em Ribeirão Preto, também no interior paulista, fazia parte do Movimento Estudantil e filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Cursava enfermagem na Universidade de São Paulo e estagiava no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, quando decidiu integrar um grupo de resistência que se formava na cidade, as Faln, Forças Armadas de Libertação Nacional. Entrou para a liderança do grupo, aprendeu a atirar e a fazer bombas.
''Eu ia cumprir a tarefa como qualquer um deles. Não tinha essa de falar que a mulher era frágil, sexo frágil. A gente não corria da raia não.'' (Memórias da Resistência – SP)
ÁUREA MORETTI
Em depoimento à Comissão da Verdade, em 2015, contou como era seu trabalho de resistência: “Tanto eu recrutava pessoas, como levava alimento para os companheiros que estavam na área rural, preparando a guerrilha rural mesmo”.
Aos 24 anos de idade, em outubro de 1969, Áurea foi presa, logo depois que outros integrantes do movimento foram identificados, detidos e torturados. No quartel de Ribeirão preto, foi barbaramente torturada e quase morreu na prisão. À Comissão da Verdade contou sobre a ida do comando da Oban, Operação Bandeirante, à Ribeirão Preto, para o que ela chamou de uma espécie de treinamento de técnicas de tortura, aprimoradas em pessoas como ela. “Eles vinham de São Paulo e de tudo quanto era lugar para treinar na gente. Chegava, rasgava a roupa, batia até desmaiar, eu fiquei dias e dias toda machucada por dentro. Por fora não faz mal, mas por dentro, pensando na nossa luta, nos nossos companheiros. Terrorista, comunista, não é para receber médico nem remédio, é para morrer mesmo.”
Em seu testemunho ao projeto Memórias da Resistência, em 2012, Áurea expôs o machismo como arma de tortura. “O que você tá fazendo na política? Tinha que tá lavando louça; trepando com o seu marido para dar cria nos filhos; obedecer a eles”.
Sua prisão foi manchete nos jornais de Ribeirão Preto. O jornal o Diário da Manhã, que circulava à época na cidade, trouxe como destaque de capa a prisão da guerrilheira sob o título "Eis a bela subversiva". Nos bastidores, Áurea contou que para posar para a foto foi obrigada a disfarçar e sorrir mesmo depois de teve quase todo o cabelo arrancado pelos torturadores e de ter passado por pau de arara, choques elétricos, cadeira do dragão, assédio sexual.
Áurea também ficou presa na Cadeia de Cravinhos, cidade vizinha, foi transferida para a Penitenciária Feminina de Tremembé, passando também pelo Complexo Penitenciário do Carandiru em São Paulo.
Em 1972, após três anos e meio de prisão, saiu em liberdade condicional e por muito tempo seguiu sendo vigiada pela polícia: “Meus Deus, que coisa difícil readaptar, sair com liberdade condicional. Todo mês tinha que me apresentar na 2ª Auditoria Militar, senão o juiz, falou, ‘olha o botão vermelho, ó, prontinho, nunca mais vai entrar numa cadeia". Bala, né, matar...”
Depois de finalmente concluir o curso de enfermagem, continuou seu caminho de assistência social e luta por direitos humanos, ministrando cursos, orientando parteiras em comunidades, trabalhou com indígenas e os sem-terra, tornando-se especialista no trabalho com ervas medicinais e fitoterapia.
Seu falecimento foi no dia 15 de dezembro de 2022.


Maria Aparecida dos Santos nasceu em 1947, em Ituverava, no interior São Paulo. Passou parte da infância em Goiás e em 1956, voltou ao interior paulista, ao mudar-se com a família para Ribeirão Preto. O pai, Patrocínio dos Santos, era membro do PCB – Partido Comunista Brasileiro. Desde menina, Cidinha aprendeu a lutar contra a opressão.
Ela tinha 17 anos quando houve o golpe militar de 1964. Já era comunista de carteirinha, em 1968 entrou para a luta armada, se tornando membro da ALN – Ação Libertadora Nacional.
MARIA APARECIDA DOS SANTOS
''Veio um cara e enfiou a mão na blusa, com um safanão arrancou os botões, passou as mãos nos seios.''
(Depoimento à Comissão da Verdade de Ribeirão Preto – 2015)
Atuava como mensageira, ajudava a expropriar placas de carros, para serem usadas em ações do grupo, aprendeu a atirar e a montar coquetel molotov. Apesar de não gostar de armas de fogo, era preciso estar pronta, caso fosse necessário na luta contra o regime militar. No centro de treinamento montado pela ALN em um sítio, em Altinópolis, à 70km de Ribeirão Preto, fazia exercícios de mira, mas foi um alívio para ela nunca ter precisado atirar.
Militante ativa, Cidinha foi sequestrada pela OBAN - Operação Bandeirante, no dia 29 de setembro de 1969, em São Paulo, enquanto planejava sair do país. Foi pega quando entrou na casa de amigos, na capital paulista. Ela tinha 22 anos de idade. À Comissão da Verdade, em 2015, contou que começava naquele momento um longo martírio nas mãos dos torturadores: “A tortura comigo começou dentro da casa em que se deu a minha prisão. Socos, pontapés, tombos, e sendo levantada pelos cabelos, tapas no rosto, soco no estômago (...) jogavam água no corpo para que os choques ficassem mais fortes”. Cidinha era torturada diariamente na OBAN. Contou que em um dos interrogatórios, cinco torturadores fizeram um círculo em torno dela. “Quando eu caia, me levantavam pelos cabelos de uma forma tão dolorosa que saia lágrimas de meus olhos sem eu estar chorando. E começavam tudo novamente até o momento em que o comandante da sessão de tortura mandava parar para me interrogar”. E, então, era a vez da tortura psicológica. Se não falasse nada, as agressões recomeçavam: murros, chutes, puxões de cabelo, socos nos ouvidos, choques elétricos, armas apontadas para cabeça, palmatória, pau de arara, cadeira do dragão.
O machismo era evidente nas torturas: “Eu estava era morrendo de vergonha de fazer xixi na frente daquele monte de homem. Isso no primeiro dia. Aí eu fiz xixi. Um vira para o outro e fala assim: ‘Olha a mijada que ela deu’. Aquilo para mim foi o mesmo que abrir o chão. (...) Tapa no rosto que humilha muito, você ali pelada, nua, é muito humilhante. A moral vai lá embaixo. (...) No início
das prisões, as torturas duravam dias, ninguém ficava sabendo para onde nos levavam”. Cidinha ficou quatro meses incomunicável.
Depois OBAN, foi levada para o DOPS, onde ficou durante um mês, “lá conheci o delegado Sergio Paranhos Fleury, chefe do Esquadrão da Morte, fui interrogada muitas vezes por ele”. Em ambos os lugares, lembra que não faltavam as piores formas de suplício, como “ficar de costas, colocar a ponta do terceiro dedo das mãos na parede e ficar na ponta dos pés e permanecer naquela posição sem se mexer, e eles me interrogando. Quando eu saia da posição me batiam com as mãos em concha nos meus ouvidos, me provocando tonturas terríveis, eu perdia todo meu equilíbrio, tudo girava e eu até vomitava. Me voltavam para a mesma posição e isso se repetia.”
Maria Aparecida foi transferida para o Presídio Tiradentes no dia 4 de novembro de 1969. Ficou na torre, uma construção no meio das outras alas onde eram encarcerados homens e mulheres, presos(as) comuns e presos(as) políticos(as). Como a torre era local exclusivo das presas políticas, passou a ser chamada de torre das donzelas. Nem todas gostaram do apelido, enxergando o viés machista, ao relacionar as guerrilheiras a “donzelas”.
Ir para o presídio foi um alívio para Cidinha. Sua chegada está descrita no livro A Torre, de Luiza Villaméa. Uma jovem de cabelos longos, “compleição delicada” e com sua “mala cinza com debrum azul”, a mesma mala que a havia preparado para sair do Brasil.
Sequer saiu do estado de São Paulo. “A mala, que eu chamava de malinha, porque era pequena, foi comigo e ficou retida na Operação Bandeirante/DOI-CODI, por ocasião da minha prisão naquele órgão de repressão. Depois foi comigo para o DOPS, quando para lá fui transferida. Também foi comigo para o Presídio Tiradentes e por último, quando fui libertada, a mala voltou para Ribeirão Preto comigo. Há muito tempo que ela estragou e ficou sem condição de uso e nem existe mais”.
Na torre, Cidinha, com seu 1,56 m, ganhou o apelido de “mico” porque a cada tilintar das chaves das carcereiras ficava “agarrada às grades” da cela no piso superior, tentando ver o que “se passava da escadaria para baixo”. (...) “O ambiente era insalubre, nos organizávamos para manter o local higienizado. A Torre era limpa. Fizemos uma comunidade, tivemos ganhos nas nossas reivindicações. Quando caia em nossas mãos alguns livros que queríamos, fazíamos núcleos para estudá-los e discuti-los. Éramos alegres, mas tristes também. Fazíamos teatro, cantávamos, fazíamos tricô e crochê para vender e usar o dinheiro para que a família de companheiros que moravam em outros estados pudesse visitá-los e para subsistência de algumas famílias.”
Na torre das donzelas não havia a tortura física, porém cada vez que alguma das presas era retirada e levada para o Dops, havia o medo ou de que não voltasse ou se voltasse viria mais uma vez marcada pela tortura. O que não era incomum. E assim transcorreram os dias em meio às dores, às pequenas e delicadas alegrias no convívio e aprendizados com as outras presas políticas; sentimentos de constante apreensão se davam a cada chegada, a cada partida, com destino certo ou incerto. Foram três anos, dois meses e dezoito dias de prisão, sem julgamento.
Quando Cidinha deixou a prisão, carregou consigo os traumas das agressões físicas e psicológicas. “É claro que fiquei feliz e contente em sair. Mas a primeira reação que tive depois da alegria foi ficar muito preocupada, insegura com a realidade que eu teria que enfrentar e como lidar com isso. Pensava muito nas companheiras que ficaram. Durante um tempo eu fiquei sem energia. Eu saia com minha mãe, mas ficava com pensamento sempre no Presídio Tiradentes, lembranças ruins povoavam minha cabeça. Andei uns tempos sem equilíbrio: caia; até chutei meu tornozelo duas vezes. Era uma dor terrível, ficava completamente inchado e roxo. Parece quase impossível esta façanha, não? Mas fui me controlando, até vencer as dificuldades psicológicas e dificuldades físicas que eu trouxe de lá.”


O medo de morrer nas mãos dos torturadores da ditadura militar (1964 – 1985) foi narrado à Comissão Nacional da Verdade por Damaris Lucena quando tinha 87 anos. Era agosto de 2014.
A história de sofrimento físico, moral, sexual foi um dos capítulos de uma vida de ausências. A mãe morreu de fome quando ela ainda era uma bebê, não havia comida para toda a família. Sobrava penúria no norte do Maranhão. A maranhense de Codó fez questão de deixar claro que a miséria foi uma companheira indesejada desde que nasceu em 22 de agosto de 1927.
''Eles me jogaram dentro de um quarto, ali eu tive medo de ser morta, porque um monte de delegado em cima de mim, me espancando, ali eu tive medo de ser assassinada.''
DAMARIS LUCENA
Damaris aprendeu a juntar as letras e formar palavras, na marra, catando pedaços de jornais jogados na rua. No quarto ano do antigo primário, parou de estudar para trabalhar.
Na adolescência, entre os 13 e 16 anos, trabalhava quebrando coco. Depois, passou a socar coco e arroz no pilão; lavar e passar roupa; cortar lenha; carregar água na cabeça por quilômetros. Foi trabalhar numa fábrica em outra cidade, Caxias, e recebia um salário equivalente a 4 reais. Casou-se com Antônio Raymundo Lucena, também operário. Damaris perdeu o primeiro filho, nascido no Maranhão. Para fugir da pobreza, em 1950 o casal decidiu que tinha que fazer o caminho da maioria dos nordestinos, pegar estrada rumo a São Paulo. Primeiro, Antônio partiu, quatro meses depois foi a vez de Damaris se juntar ao marido. Os dois conseguiram trabalho numa fábrica têxtil. Na capital, tiveram outros quatro filhos: Ariston, Denise, Adilson e Telma.
Ao trabalho na tecelagem, o casal agregou a luta sindical por melhores condições de vida. Damaris estava com 24 anos e não entendia nada sobre militância política e comunismo. “Um dia eu falei: Gente, o que é que é comunismo? ‘Companheira, comunismo é um partido. É um movimento que quer que todo mundo tenha moradia, todo mundo tenha hospital, todo mundo tenha escola, todo mundo tenha dentista, todo mundo seja tratado como ser humano’. “Isso aí é comunista? Ah, bom, eu também sou comunista”. Contra as injustiças, Damaris disse que sempre teve bronca das pessoas que maltratavam os negros: “Porque eu sou de família africana. Meu pai... Meu bisavô foi trazido da África e os filhos foram todos vendidos no Brasil.”
A militância custou o emprego de Damaris cinco anos após ser contratada na fábrica Ricardo Jafet. Ela trabalhou como ajudante de cozinha, como doméstica, feirante. Damaris e o marido eram membros da VPR – Vanguarda Popular Revolucionária, quando vários militantes foram presos. Com o AI-5, decretado em dezembro de 1968, a família Lucena entrou para a clandestinidade, mudando de cidade em cidade. A última foi em Atibaia, interior de São Paulo. Nesse município, os passos dos Lucena começaram a ser seguidos por um informante da polícia. Até que a família foi pega em casa, no bairro Jardim das Cerejeiras, em 1970. Damaris dava aula aos filhos porque eles não podiam ir para a escola. No dia em que foram presos, o marido estava deitado quando ouviram batidas na porta. A casa estava cercada por policiais. “Meu marido saiu, estava sem camisa e eles falaram: ‘Vai vestir a camisa que você vai prestar declaração na delegacia’. Meu marido falou: ‘Eu não me entrego pra ninguém. Ninguém vai me pendurar no pau de
arara’. Ele pegou a arma e resistiu à prisão. Foi um momento muito terrível”. Ela temeu pela própria vida e dos filhos e viu o companheiro Antônio Raymundo Lucena ser assassinado: “Vi dar o tiro de misericórdia na cabeça do meu marido. Ele já estava quase morto, o pé dele torceu assim. Eu falei, meu marido ainda estava vivo quando deram aquele tiro na cabeça dele. Voltei e me sentei de novo. E os caras gritavam: ‘Mata ela! Mata logo ela! Mata os filhos dela’! Eu tive tanto medo de ser morta naquela noite [choro] e os meus filhos inocentes também.”
Damaris foi levada para a Oban – Operação Bandeirante, na capital paulista, onde ficou incomunicável. As crianças, Adilson, a irmã gêmea Denise e a mais nova, Telma, não foram aceitas pelas freiras de um colégio católico: “Aquelas freiras me conheciam. As freiras do convento e meus filhos foram levados pra lá quando eu estava presa. As freiras não quiseram ficar com os meus filhos. Meu filho viu ela balançar com a cabeça, que não queria eles lá. Jogaram meus filhos naquele juizado de menor, naquela coisa medonha”. Denise, Adilson, Telma ficaram em alas distintas no Juizado de Menores. Sofreram discriminação e maus-tratos por serem filhos de “terroristas”. Adilson, de nove anos, apanhava da polícia como gente grande. O colchão era molhado para que as crianças não se deitassem.
O filho mais velho, Ariston, não estava na casa de Atibaia quando a polícia chegou. Ele também militava na VPR e meses depois da morte do pai, da prisão da mãe e dos irmãos pequenos, foi preso e torturado. Damaris ficou sem notícia alguma de Ariston. Ela mesma ficou incomunicável por mais de vinte dias. Na Oban Damaris foi bastante torturada. Riam ao dar choque elétrico nela e os xingamentos seguiam a lógica de sempre ao chamá-la, assim como às outras mulheres, de “puta”. Quando ela menstruou, ouviu mais xingamentos: “Leva essa mulher fedorenta pra lá. Tira essa mulher daqui”. Ofensas seguidas de “...pancadaria, choques, murros na cara, bofetada daqui, bofetada dali. Levei muito chute”. Sádicos e violentos, os torturadores deram tantos chutes na vagina de Damaris que a abriu e “o útero ficou pendurado pra fora e a bexiga e tudo”. Mas a pior dor foi quando os torturadores levaram seus três filhos na prisão e ameaçaram torturá-los caso ela não falasse o que sabia. “Eu sei que um dia eu subi na janela, estou vendo meus filhos lá embaixo no saguão na Operação Bandeirante, me deu uma crise de loucura. Trazer meus filhos pra torturar, meus filhos pequenos. Eu dava cada grito.”
Da Oban foi transferida ao DOPS onde encontrou seus três filhos menores e sentiu tristeza e revolta aos vê-los ali “embolados”, com medo. Damaris estava na lista dos presos políticos que seriam trocados pelo cônsul japonês Nobuo Okuchi, sequestrado em São Paulo. Os outros presos eram madre Maurina Borges da Silveira, Shizuo Ozawa (conhecido como Mário Japa), Otávio Angelo e Diógenes Oliveira. Damaris não aceitou a ordem de deixar os filhos no Brasil. “Eu falei: Não. Não. Eu não saio do Brasil se não levar meus filhos. Não saio do Brasil sem levar meus filhos”. Por fim cederam. Damaris, os filhos e os quatro presos embarcaram no avião rumo ao México. “Quando entramos no avião, eu falei: Vocês não vão me algemar, por que como é que eu vou cuidar dos meus filhos? Algemaram a freira. Algemaram os companheiros que saíram juntos.”
Damaris e os filhos não permaneceram no México. Receberam asilo do governo de Cuba. Na terra de Fidel Castro pôde formar os filhos e, com satisfação, lembra que ela mesma fez dois anos de jornalismo: “Eu botei o pé na faculdade em Cuba. Uma camponesa, uma operária botar o pé na faculdade em Cuba é um prodígio”. E foi em Cuba que Damaris adotou, informalmente, Ñasaindy Barret, filha da militante Soledad Barrett Viedma.
Aparaguaia estava em Cuba e recebia treinamento de guerrilha. Ela veio ao Brasil, deixou a filha com Damaris, e aqui foi assassinada no Massacre da Chácara São Bento, no Recife, em janeiro de 1973.
Com a Lei da Anistia de 1979, Damaris decidiu retornar ao Brasil, sonhava em rever Ariston, o filho mais velho. “Inclusive, quando faltava acho que um mês ou dois pra nós sair de Cuba, eles soltaram ele. Eu falei: Eu quero voltar pro Brasil. Eu quero ver meu filho. Fazia mais de 10 anos que eu não via ele.”
Seis anos após dar testemunho à Comissão Nacional da Verdade, a ex-presa política, operária, líder sindical, morreria aos 93 anos, vítima de um câncer, durante a pandemia, em 2020. Damaris morava em Valinhos, município vizinho de Campinas, no interior de São Paulo. Essa mulher nordestina, negra, lutou bravamente contra a miséria desde que nasceu; lutou contra o regime militar que fez da tortura uma cartilha diária: “Essas ditaduras brasileiras fizeram muita injustiça, mas muito mesmo. As catervas estão por aí, vivas ainda, e falando que é mentira e falando que não teve isso e que não teve aquilo. Semana passada eu estava vendo um tenente-coronel, um desgraçado desses aí, falando que é tudo mentira que não teve nada disso. Vocês sabem perfeitamente que ele andam por aí...”


Os dados acima constam da certidão de óbito lavrada em 7 de março de 1996. A mãe de Iêda, Eunice Santos Delgado, foi incansável na busca por notícias de sua filha, sequestrada pelos militares.
Dona Eunice militou em grupos de familiares de desaparecidos e, quando Nelson Mandela foi libertado da prisão em 1990, na África do Sul, reacendeu nela a esperança de encontrar a filha viva, pois tinha fé que, se Mandela saiu vivo da prisão após 27 anos, “...isso também poderá acontecer com os que estão presos aqui no Brasil”.
''Falecida em 11 de abril de 1974 em hora ignorada no(a) lugar ignorado. (...) Causa mortis: ignorada. Local de sepultamento: local ignorado.''
IÊDA SANTOS DELGADO
Dona Eunice morreu aos 74 anos, em 1992, quase oito meses depois de seu marido, Odorico Arthur Delgado, morto aos 73 anos. Os dois nunca reencontraram a filha Iêda. A família conseguiu apenas o atestado de óbito. Iêda tinha 28 anos quando desapareceu pelas mãos dos seus torturadores.
Nascida em 9 de julho de 1945, no Rio de Janeiro, Iêda era uma mulher afrodescendente. A mãe, dona de casa, e o pai, funcionário do Banco do Brasil. Iêda formou-se em Direito pela UnB - Universidade de Brasília. No livro “Luta, Substantivo Feminino – Mulheres torturadas, desaparecidas e mortas na resistência à ditadura”, da jornalista Tatiana Merlino, publicado em 2010, há um capítulo sobre essa mulher que lutou contra a ditadura militar brasileira: “Sua participação política teve início entre 1967 e 1968 em Brasília, quando estudava direito na UnB e participou discretamente das mobilizações estudantis que marcaram o período.”
Iêda militava na Aliança Libertadora Nacional, mas não em ações armadas; integrava a equipe de apoio que ajudava pessoas perseguidas pela ditadura. E foi presa durante uma dessas ações. A advogada tinha viajado a São Paulo para organizar a saída do Brasil de um casal de militantes da ALN. No dossiê da Comissão Especial de Desaparecidos Políticos consta que Iêda Santos Delgado embarcou no Rio de Janeiro num voo da VARIG. Quatro dias se passaram e sua mãe recebeu um telefonema anônimo informando que Iêda “caiu” na capital paulista. A partir dessa ligação começou a busca da família por notícias de Iêda em quartéis, delegacias, DOI-CODI, DOPS, hospitais, Instituto Médico Legal. É o que está relatado no dossiê. Um general disse à dona Eunice que Iêda teria sido presa em Campinas e que em decorrência das torturas chegou a ser hospitalizada. Mas nada disso foi comprovado.
Até sua morte, em 1992, dona Eunice não desistiu de procurar pela filha. A cada telefonema anônimo que recebia com a “voz” de Iêda afirmando que estaria bem, alimentava a esperança de que a filha estivesse viva. Outro motivo para que dona Eunice apostasse nessa versão foram as cartas escritas por Iêda. A primeira, sem data e com carimbo de Belo Horizonte, em cinco linhas contava que “...em breve se comunicaria e que a família não se preocupasse”. O dossiê sobre o desaparecimento de Iêda Santos Delgado revela também que um mês após a primeira carta, a família recebeu outra postada no Uruguai e com a letra muito tremida”. Dona Eunice resolveu pedir exames grafológicos das cartas e foi comprovado que a caligrafia era de sua filha. Nunca mais se ouviu falar de Iêda.
No dia 17 de agosto de 1976, dona Eunice escreveu uma carta ao então chefe do SNI – Serviço Nacional de Informações, o general João Baptista de Oliveira Figueiredo onde relatava a peregrinação feita em busca de um sinal, uma pista do paradeiro da filha. Dona Eunice suplicou ao general que determinasse providências para localizar Iêda. “À pobre mãe que subscreve este pedido, até mesmo o comunicado de já não pertencer minha filha ao mundo dos vivos é preferível à incerteza, à desesperança e à dor cruciante determinadas pela atual situação”. Ao encerrar a carta, dona Eunice apelou ao general Figueiredo: “Senhor General, quer as bençãos da Virgem Santíssima, mãe de todos e também as de vossa santa progenitora recaiam sobre vós, pelo que puder fazer para minorar a dor de quem esta subscreve. Respeitosamente.”
Não houve compaixão desse general que viria a ser o último presidente do regime militar do Brasil (1979 – 1985); nem de todos os outros militares e autoridades procurados por dona Eunice. Ela morreu sem saber onde estava sua filha. Uma morte sem corpo.


Essa foi a orientação de um médico aos torturadores.
Ele se referia a Criméia Schmidt de Almeida, que estava grávida de sete meses quando foi sequestrada pelos militares a serviço da ditadura.
Ela deu à luz a um menino e foi impedida de vê-lo.
Criméia não sabia se o bebê estava seguro, se era alimentado e, além disso, tinha medo de que seu filho fosse dado à adoção, ameaça feita diversas vezes.
Ela só voltou a ter contato com o bebê depois de 53 dias.
''Só não pode espancar a barriga.''
CRIMÉIA SCHIMIDT DE ALMEIDA
Criméia Schmidt de Almeida já tinha sido detida no Congresso de Ibiúna, em 1968, e foi presa pela segunda vez, aos 26 anos, no dia 29 de dezembro de 1972. Eram os anos de chumbo -, início em dezembro de 1968 com o decreto assinado pelo presidente Arthur da Costa e Silva, o Ato Institucional nº 5. O AI-5 suspendia todos os direitos constitucionais. Terminou, oficialmente, em 1978, porém a violência contra a oposição aos governos militares continuou até 1985, quando saiu o último general-presidente da ditadura, João Baptista Figueiredo.
Antes de ser presa, arbitrariamente, porque a prisão não foi comunicada a nenhum juiz, Criméia estava na região do Araguaia, na divisa dos estados do Pará, Maranhão e do atual Tocantins, no confronto que terminou em 1974 com inúmeros desaparecidos, entre indígenas, camponeses, guerrilheiros. Oficialmente, morreram 67 guerrilheiros e 31 camponeses. A maioria dos corpos não foi identificado. À Comissão Nacional da Verdade, em 2014, audiência pública realizada sobre os mortos e desaparecidos da Guerrilha do Araguaia, Criméia falou sobre sua passagem por aquela região. Antes de voltar para São Paulo, em 20 de agosto de 1972, Criméia ficou no Araguaia por três anos. O retorno à capital paulista ocorreu para restabelecer o contato das lideranças do partido na guerrilha e do comitê central. Mas o principal motivo era porque ela estava grávida.
Em 28 de dezembro de 1972, Maria Amélia de Almeida Teles, a Amelinha Telles, e o marido César Augusto Teles, irmã e cunhado de Criméia, foram presos. No dia seguinte, foi a vez de Criméia ser sequestrada, como ela faz questão de enfatizar. E não foi somente ela, seus dois sobrinhos de menos de cinco anos também foram levados para a OBAN – Operação Bandeirantes. Criméia se identificou com outro nome e como babá das crianças. Quando os homens da repressão descobriram quem era ela - pois já estavam atrás da militante política, a mesma que foi presa em 1968 - começaram os interrogatórios e torturas físicas e psicológicas: “Quando eles me identificaram, eu passei a ficar nesse alojamento, só, nunca mais fiquei com ninguém na cela. O primeiro que me espancou foi o major Carlos Alberto Brilhante Ustra, no dia que eu fui identificada. O Ustra chegou, ele já veio xingando no portão e ele entrou onde eu estava e agarrou-me pelos cabelos e começou a me espancar até a salinha de baixo da tortura, no andar térreo. Pouco depois eu perdi a consciência. E a partir daí, todos os policiais, todos os militares, inclusive o carcereiro me torturava. Um espancamento com murro, com qualquer coisa, sem interrogar, interrogando. Depois que eles descobriram quem eu era, eu passei a andar encapuzada. Bem, nessa altura eu já estava no sétimo mês de gravidez.”
Criméia era submetida a interrogatórios consecutivos; ouvia ameaças de que iria sofrer um acidente de carro; à noite a levavam até um veículo, sempre encapuzada e, de acordo com relados dela, ficava a noite toda dentro do carro aguardando para sair e sofrer o acidente. Ela escapou das torturas no pau de arara e acredita que foi por causa da barriga de sete meses, só que tiveram outras formas de torturá-la, como a roleta-russa com arma automática, “...eles só me assustaram com o primeiro tiro, depois não assustavam mais.”
Do DOI-CODI, na capital, Criméia foi levada de avião para Brasília, em janeiro de 1973. E a vida dela enquanto ficou no PIC, Pelotão de Investigações Criminais da Polícia do Exército, não melhorou. As torturas continuaram, como ela contou durante seu depoimento: “Enquanto eu estive lá antes de ter meu filho, as condições eram péssimas, mas eu sempre ficava reivindicando alguma coisa, então pedi para tomar banho de sol, aí me puseram para tomar banho de sol por volta de meio dia num pátio de cimento muito quente, descalça, fez bolhas nos pés”. No dia 11 de fevereiro, Criméia sentiu dores fortes e a levaram para o Hospital Base de Brasília, um médico não quis atendê-la porque presos políticos davam muito trabalho. Retornou ao PIC e foi colocada em uma cela sem ventilação, com muitas baratas e a quantidade delas aumentou quando a bolsa amniótica se rompeu. Criméia contou com a ajuda de outros presos vizinhos de cela: “Eram militares, presos comuns, traficantes, não eram presos políticos. (...) Ou seja, esses bandidos de dentro das grades eram mais humanos do que os bandidos que estavam do lado de fora.”
Em trabalho de parto, Criméia foi internada no Hospital do Exército e lá também sentiu o descaso pois o obstetra, um médico oficial do Exército, não quis socorrê-la porque ele não estava de plantão. Quando ela reclamou que o filho dela poderia morrer, ouviu dele que “não tem importância, é um comunista a menos”. O filho de Criméia nasceu no dia 13 e ficou com a mãe no hospital por cerca de 50 dias até o dia 1º de abril, porque houve complicações pós-parto. “Bem, o meu filho ficou comigo assim, desses 50 dias, ele uma hora ia para amamentar, outra hora ele não ia, eles usavam meu filho para me torturar. E às vezes eles faziam ele ficar dois, três dias sem vim para mamar, e ele prometia ele para o juizado de menores porque eu não colaborava, voltava vomitando, voltava, enfim”. Depois o filho de Criméia foi levado para a casa de uma tia e a rotina de tortura física recomeçou. No Ministério do Exército, em Brasília, “...me deixaram o dia inteiro sem beber e sem comer, e sem ter lugar também. E no final um oficial, sempre sem identificação, me pediu desculpas porque eles estavam muito ocupados e não podiam me interrogar e que eu voltasse para o PIC.”
Criméia foi liberada da prisão em dezembro de 1973 e levada por três militares para a casa de uma tia em Belo Horizonte. Durante a viagem, ela sentiu medo de ser morta numa estrada qualquer. A enfermeira é enfática ao dizer que “...na verdade eu nunca fui presa, eu nunca fui apresentada como presa à justiça, fui sequestrada esse tempo todo.”
A luta de Crimeia e sua familia continuou. Em 2005, ela, o filho, a irmã, o cunhado e os sobrinhos, moveram uma ação declaratória na Justiça exigindo que o coronel reformado Brilhante Ustra fosse responsabilizado pelas torturas que eles sofreram. Em um feito inédito, a família ganhou a causa e Ustra foi o primeiro agente da ditadura oficialmente reconhecido como torturador.


Leila Bosqueto nasceu em novembro de 1947, em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo e logo mudou-se para São Joaquim da Barra, a 70 km de distância, onde viveu por 19 anos. Leila já participavam de movimentos estudantis e em 1969 começou a colaborar com as Forças Armadas de Libertação Nacional, grupo de resistência contra a ditadura, com sede em Ribeirão Preto e com integrantes de várias cidades do interior de São Paulo.
Ela distribuída na faculdade, em Bauru, o jornal O Berro, produzido pelo grupo e considerado subversivo pela ditadura.
''Depois de muitos tratamentos e terapias, hoje consigo dizer e escrever sobre o que aconteceu. Sei que estou viva, sobrevivente de um tempo vergonhoso de nossa História.'' (Em entrevista à produtora NuOlhar filmes)
LEILA BOSQUETO
Estudante de educação física, ela tinha 21 anos quando foi presa, em outubro de 1969, na frente da Instituição Toledo de Ensino.
Entre as violências que sofreu na prisão, uma marcou profundamente. O soco na cara, que levou do delegado Miguel Lamano. “E muitos xingamentos e palavrões; me chamavam de puta, vaca, biscate, galinha..., coisas desse tipo. Muitos empurrões, ameaças e queriam que eu batesse em um companheiro preso, que estava com os pés na bacia de água tomando choque elétrico. Eu me neguei e por isso apanhei com muitos socos e tapas na cara. Torturas psicológicas constantes, diziam que iam matar minha família e amigos.”
Leila “caiu” no mesmo período das prisões de outros membros das FALN e ficou presa com eles no quartel de Ribeirão Preto. “Não sei quantos dias, gente. Quando tá preso, a gente perde a noção do tempo, tá? Eu não sei se é dia, se é noite, quantos dias passaram, quantas horas, não sei quanto tempo passou. Eu fiquei presa dentro de uma sala que guardava os instrumentos da banda. Eu tinha uma vontade de tocar com esse tambor.” Mas Leila não tocou o tambor. Calada, foi submetida a uma das várias formas de tortura: ver o então namorado, com quem se casou mais tarde, Djalma Quirino de Carvalho, arrebentado. “Eles me apresentaram: ‘Olha aqui seu herói’. Fazia um calor dos infernos, era novembro, e ele estava com uma blusa de manga comprida. Eu queria ver os machucados dele. O policial do meu lado dando soco e aí disse: ‘Vai sua puta, vai, olha agora. Prostituta, você não vale nada’. Era assim, horrível, horrível de se ouvir. Aí o Djalma me mostrou uma parte do braço com marcas de cigarro que eles apagavam nos braços dele, assim como eles apagavam também o cigarro nos seios da Áurea.”
A estudante foi transferida para a Cadeia de Cravinhos, cidade vizinha, onde dividiria uma cela com uma presa da qual só se recorda do primeiro nome, Lázara, que logo seria libertada; Áurea Moretti, uma das líderes das FALN, e com a madre Maurina Borges da Silveira, diretora do Lar Santana, na Vila Tibério, em Ribeirão Preto, que cedeu uma sala para encontros do MEJ – Movimento Estudantil Jovem e queimou documentos que a ditadura considerava subversivos. Vanderlei Caixe e Mário Lorenzato também faziam parte do grupo e usavam o porão do Lar para guardar os documentos e imprimir o jornal O Berro.
Em Cravinhos, as três se uniram para suportar as agressões físicas, psicológicas e sevícias. Leila afirma, com os olhos marejados, que não foi tão agredida como as duas companheiras, Maurina e Áurea. Ela completou seus 22 anos na prisão: “Passei meu aniversário atrás das grades. Mas teve bolo e docinhos”. Presentes oferecidos pela primeira-dama da cidade. A mulher do prefeito mandou entregá-los após de ter ido à cadeia para conhecer as “terroristas” e ficou chocada: “Quando eles chegaram, viram uma freira, uma menina que era a Áurea, estourada, e eu, a aniversariante.”
Depois de um mês, Leila foi libertada. A madre e a Áurea, não! “Quando fui solta, me fizeram um sermão e me fizeram prometer que jamais iria contar sobre as torturas sofridas e muito menos sobre as torturas que presenciei da Madre Maurina e da Áurea Moretti. Elas sofreram muito e eu vi”. Em meio à dor, Leila se recorda de como elas se abraçavam todos os dias “porque era só o que nós tínhamos”, e não se esquece das vezes que Áurea cantava para elas: “A Áurea estava muito machucada, e mesmo assim ela cantava O Som do Silêncio para nós. E cantava também Poeira do meu Sertão.”
Leila voltou a estudar educação física e precisou lidar com o afastamento dos colegas de curso: “Eles se afastaram de mim, por medo, como se eu tivesse uma doença contagiosa”. Formada, mudou-se para São Paulo e durante 28 anos foi professora. Em 1973, foi presa novamente. Nessa época era militante da ALN – Aliança Libertadora Nacional; saiu dias depois, por falta de provas.
Leila teve duas filhas com Djalma, de quem se separou no início de 1977, e um filho do segundo casamento. Aposentada, retornou a Ribeirão Preto em 1984. A ex-presa política passou quase a vida toda sem conseguir falar sobre as torturas sofridas: “Eu me bloqueei mesmo. A gente faz terapia, terapia, terapia, terapia. E aí a gente, uma hora, destampa. E eu mudei também meu estilo de vida pra sobreviver. Eu parti para holística e consegui me reequilibrar.”
A primeira vez que falou abertamente sobre o assunto foi em uma entrevista em 2023, para o documentário produzido pela NuOlhar filmes, sobre a freira com quem ficou na prisão. Mais de 50 anos depois, Leila se permitiu ser vista por seus amigos e familiares: “Quando aconteceu o filme Madre, meus filhos puderam conhecer um pouco mais de mim. Somente um neto assistiu (tenho sete), mas ele disse que sentiu muito orgulho por eu ser avó dele. Outros netos sabem de minha prisão, também se sentem representados. Meus filhos e netos são muito solidários.”
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Essa é uma entre tantas falas marcantes da entrevista da madre Maurina Borges da Silveira à jornalista Matilde Leone, na década de oitenta.
As duas se encontraram na casa da mãe da freira, em Conceição das Alagoas, cidade mineira. Desse encontro nasceu, segundo Matilde, "uma cumplicidade” e o livro “Sombras da repressão: O outono de Maurina Borges”, publicado 1998, que mescla realidade e ficção.
Maurina nasceu em Perdizes, em Minas Gerais, em 1926.
Desde criança sonhava em seguir a vida religiosa.
''Dava, assim, cinco minutos de choque, depois parava. E foi esse negócio até que eu já não estava aguentando mais.''
MADRE MAURINA BORGES DA SILVEIRA
A vocação aflorou aos 7 anos. De uma família de pais católicos fervorosos, Maurina era a oitava de onze filhos, quatro se tornaram religiosos. Ela entrou para a vida religiosa aos 14 anos e deu os votos perpétuos em 1950, na Congregação das Irmãs Franciscanas da Imaculada Conceição. Em 1969, foi convidada para ser diretora do Lar Santana, um lar de meninas, na Vila Tibério, em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo.
Já na chegada à cidade, incomodou uma parte da alta sociedade ribeirão-pretana. Como o Lar Santana era exclusivamente para crianças pobres, a madre resolveu devolver crianças que não se encaixavam nesse perfil. Eram filhas de mães solteiras de famílias ricas. Em entrevista ao jornalista Luís Eblak, no caderno Mais, da Folha de São Paulo, em junho de 1998, falou sobre o assunto. “As famílias davam cheques para nós e tudo o mais, mas o correto era que as crianças vivessem em suas casas. O que eu fiz? Devolvi as 15 crianças. Fui à casa de cada uma delas e as devolvi. E eram mansões, casas enormes. Eu dizia para as famílias: O orfanato é lugar de criança necessitada que precisa de um lugar para viver, que não tem pai nem mãe. Acho que isso acabou influenciando de algum jeito o que me ocorreu depois. Não sei quem eram as famílias, mas isso deve ter tido ligação com a minha prisão.”
A prisão da madre aconteceu em 25 de outubro de 1969. Ela tinha 43 anos. Foi acusada, injustamente, de pertencer ao grupo de resistência Forças Armadas de Libertação Nacional, com sede em Ribeirão Preto e integrantes em várias cidades o interior de São Paulo. Isso porque ela cedia uma sala aos jovens que faziam parte do MEJ – Movimento Estudantil Jovem, da Igreja Católica. Eles eram também membros das FALN e usavam, além da sala para os encontros, o porão onde, entre outras atividades, imprimiam O Berro, jornal de denúncias contra o regime militar.
Quando madre Maurina soube, pelos jornais, da prisão de alguns dos jovens, pediu a um funcionário que arrombasse a porta do porão. Encontrou materiais que considerou comprometedores, avaliou que poderiam prejudicar tanto o Lar como os jovens e muitas pessoas que tinham seus nomes nos documentos arquivados ali. Ela pediu a um funcionário que queimasse tudo. Maurina sempre negou qualquer envolvimento com as FALN, mesmo assim, foi chamada de “freira subversiva”, “amante de terrorista” em manchetes de jornais locais e estaduais. Presa, foi levada primeiro ao quartel de Ribeirão Preto. Ali começava seu calvário.
Uma equipe da OBAN – Operação Bandeirante, órgão repressor dos militares, chegou à cidade para interrogá-la. Entre os torturadores estava o delegado Sérgio Paranhos Fleury, que não demorou a lhe dar um tapa no rosto a chamando de “freira do diabo”. Maurina sofreu assédio sexual. Entre ameaças e intimidações, os torturadores diziam que fariam um exame ginecológico nela, rasgaram sua blusa e deram choques elétricos nos dedos e nos seios. “E isso durou muito tempo, até umas três ou quatro da tarde. Depois veio um delegado, bêbado, e começou a me abraçar e eu disse: ‘Sai pra lá.”
Os dois delegados responsáveis por sua prisão, Renato Ribeiro Soares e Miguel Lamano, foram excomungados pelo bispo da cidade, Dom Felício Vasconcelos, uma pena extremamente grave para os católicos daquela época. A excomunhão foi lida nas missas de todas as igrejas da região.
A prisão e as torturas da madre foram também um dos fatores determinantes para que o então bispo de São Paulo, Paulo Evaristo Arns, se tornasse uma das pessoas mais combativas pelos direitos humanos no país e crítico ferrenho do regime militar.
De Ribeirão Preto, Maurina foi transferida para a cadeia de Cravinhos. Ficou incomunicável e continuou a apanhar dos torturadores.
Depois de um mês, foi transferida para o Presídio de Tiradentes, na capital. Levada à Torre (lugar onde só ficavam presas políticas), foi colocada na maior cela juntamente com outra presa, Áurea Moretti, com quem ficou presa em Cravinhos. Outras presas políticas, como Maria Aparecida dos Santos, a Cidinha, ficaram impressionadas com a serenidade de Maurina, histórias relatadas à jornalista e escritora, Luiza Villaméa, no livro A Torre. Cidinha narrou que dias depois da chegada, Maurina passou diante da cela dela e com um sorriso no olhar disse: “Adeus, vou ficar com minhas irmãs”. As irmãs à qual Maurina se referia eram as religiosas do Bom Pastor, congregação que administrava o presídio feminino de Tremembé. Em Tremembé, Maurina se sentiu em casa, acolhida, mas meses depois, em março de 1970, ela assistia à TV quando ouviu seu nome na lista dos cinco presos políticos que seriam trocados pelo cônsul japonês, Nobuo Okuchi, sequestrado em São Paulo pela VPR – Vanguarda Popular Revolucionária. Maurina ficou atônita, não queria sair do país. Escreveu uma carta ao ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, manifestando seu desejo de permanecer no país: “Atormenta-me a perspectiva de não poder rezar ajoelhada sobre a terra que me viu nascer”.
Cinco meses após ser presa em Ribeirão Preto, e a contragosto, embarcou num avião com outros quatro presos políticos, rumo ao México para onde foi banida. Foram anos de solidão, distante da família, de sua congregação, dos amigos. Anistiada em 1979, julgada e inocentada, madre Maurina Borges da Silveira ainda retornaria ao México para concluir o trabalho social que desenvolveu lá, durante todo o período de seu banimento. Em 1985, voltaria definitivamente ao Brasil. Permaneceu em silêncio, imposto pela congregação da qual fazia parte e foi impedida de receber o pedido de desculpas do Estado pelas torturas e sevícias que sofreu.
Em 2011, aos 84 anos, madre Maurina morreu, vítima do Alzheimer. Uma doença que apaga aos poucos a memória. Uma morte significativa de uma mulher, mais uma, vítima da tortura praticada por civis e militares durante a ditadura. Uma tortura também de gênero. Mesmo assim, Maurina repetia que perdoava a todos, como confidenciou a uma cunhada sobre uma sessão de tortura em que seus agressores ficaram nus diante dela: “Ela disse que olhava os homens nus e tinha dó de cada um deles.” Sentimento de
compaixão que também expressou ao saber, em 1979, da morte do delegado Fleury, seu pior torturador: “Que Deus o perdoe.”


Robêni Baptista da Costa foi presa quatro vezes durante a ditadura civil-militar (1964 – 1985). Quatro anos depois do golpe, a estudante foi pega pelos militares pela primeira vez. Era 12 de outubro de 1968.
Ela estava no 30º Congresso de Estudantes da UNE – União Estadual dos Estudantes, num sítio em Ibiúna, interior de São Paulo. Robêni era da organização do encontro e foi detida.
Ao todo, 400 homens da Força Pública e do Dops – Departamento de Ordem Política e Social prenderam mais de novecentos estudantes.
''Não teve um dia que eu não me lembrasse do período em que eu estive presa, não da tortura propriamente, mas de detalhes, de acontecimentos.'' (Relatório da Comissão Nacional da Verdade - 2014)
ROBÊNI BAPTISTA DA COSTA
No relatório da Comissão Nacional da Verdade, de 20214, a ex-presa política descreve como foi a abordagem: “Acorda, seus vagabundos! Bandidos, vagabundos!” Os policiais empunhavam armas pesadas. Os jovens passaram o dia numa fila enorme. Chovia, fazia frio, tinha muita lama. Para se protegerem, usavam cobertores listrados, chamados de “peleja” porque se cobrisse o pé descobria a cabeça. “E aí, durante o dia todo andava...era uma marcha, como uma marcha de desabrigados, de exilados, de gente que está na guerra. E eles foram nos colocando nos ônibus muito vagarosamente. Viemos para São Paulo, para o presídio, eu acho que era Presídio Tiradentes, tem gente que diz que não era, mas eu acho que era o Presídio Tiradentes, porque tinha um pátio enorme.” Com medo e na tentativa de não ser presa, Robêni deu o nome de Rosângela Maria Gonçalves. Ao ser perguntada sobre o documento de identidade, disse que tinha perdido “...não tinha perdido, mas era plausível? Era. Naquela chuva, naquela lama.” E para poupar os familiares, trocou o nome de todos. Ficou três dias detida.
A universitária da USP, filha de lavradores semianalfabetos, nasceu em 1945, na zona rural, chamada Mirassolândia, interior de São Paulo. Como o pai queria dar uma vida melhor aos filhos, principalmente às duas meninas, a família mudou-se para Mirassol onde Robêni pôde estudar. Saiu de lá rumo à capital paulista, prestou vestibular e conseguiu uma vaga no curso de Letras, “...naquela época o estudante de um curso superior poderia dar aulas, porque não havia professor. Eu fui dando aula durante o dia e estudando à noite.” E foi nessa fase que Robêni se envolveu, de fato, na luta contra a ditadura. Na ALN – Ação Libertadora Nacional, ela ajudava na propaganda, produzia panfletos e distribuía. Em 1969, “caiu” pela segunda vez, a primeira com o nome verdadeiro. Como a OBAN – Operação Bandeirantes, ainda estava se estruturando, não tinha a ficha da primeira prisão dela, e sim da tal “Rosângela”. “Fui torturada? Fui, mas era diferente. O delegado que era de Santos, a cada três dias ele voltava e me interrogava. Ele me dizia pra escolher choque ou cadeira do dragão, que naquele momento eu nem sabia o que era, ou resolver o problema da mulher dele que era professora em dois ou três cursinhos. Então ele trazia umas 400 redações pra eu corrigir; eu passava 12 horas corrigindo redações. E eu corrigi direito, nunca fiz sacanagem. E eu era muito boa nisso.”
Libertada um mês depois, voltou a dar aulas e a estudar. Robêni ajudou a reorganizar a UEE – União Estadual dos Estudantes. E foi na UEE que ela conheceu Alcides Mamizuka, que também foi preso-político, e com quem se casaria mais tarde. Continuou a fazer panfletagem e recebeu da ALN a tarefa de traduzir do espanhol o livro Da Guerra, de Carl von Clausewitz, escrito no século XIX, sobre a guerra humana, guerrilha urbana. Ao mesmo tempo o companheiro dela estava imprimindo o Minimanual do Guerrilheiro Urbano, de Carlos Marighella. “Eu dava aula à noite e durante o dia trabalhávamos no manual, a gente imprimia milhares, em casa, e distribuía dentro do movimento estudantil. E aí eu fui presa de novo, em janeiro de 1971”. Desta vez ela sentiu a mão pesada dos torturadores: “Tinha um cara chamado JC, ele se autodenominava Jesus Cristo, tinha um cabelo comprido, barba, usava uma cruz imensa no pescoço, caiu na mão dele você estava ‘fodida’. E eu caí na mão dele. No momento da prisão ele me deu um murro tão grande que me arrebentou dois dentes da arcada inferior”. O murro fez com que Robêni desmaiasse e assim chegou à OBAN. Ela foi jogada na cela, as outras presas políticas a orientaram a ficar “desmaiada” para escapar da tortura, até que não deu mais para enganar os torturadores. Robêni e a jornalista Márcia Coelho, da Band foram colocadas na mesma sala de tortura. “Eu não conhecia ela, nunca tinha visto. E aí trouxeram a moça, ela tinha um seio muito grande, numa época que cirurgia do seio era pra alta burguesia, né? Como ela tinha um seio muito grande, ele (JC) começou a rir dela, tirou a roupa dela, tirou a minha roupa e fez o pessoal da guarda, que era do exército, passar em revista a gente, sem roupa, peladas, as duas peladas, e os caras batendo continência para nós. Olha, uma coisa tremenda”.
Nos dois anos de prisão, a tortura era uma rotina diária e seguia um roteiro macabro: pelada, tomava choque na vagina, no ânus e, na prática, conheceu a cadeira do dragão, “... tinha uma chapa de metal nas costas, no assento e nos braços. Amarrava a gente pelos braços e pernas, eles jogavam água pro choque ser mais forte. Dava choque, dava choque, ia perguntando, perguntando”. Robêni se orgulha de não ter entregado nenhum companheiro de luta porque dava os nomes de dois contatos que não estavam mais no Brasil. A ex-presa política consegue falar sobre torturas sofridas, até de uma pouco comentada: furar petróleo. Abaixada, com um dedo no chão, a pessoa tinha que girar em torno dele: “Dez minutos, 15 minutos, meia hora, uma hora, você está morta no chão...”; mas Robêni jamais conversou sobre tortura com seu companheiro. Ela que foi obrigada a acompanhar uma sessão de tortura de Alcides Mamizuka. Ele estava no pau de arara, baleado em cinco lugares e, num deles, tomava choques elétricos. Uma imagem impossível de esquecer. “Uma memória horrorosa. É tão horroroso que eu jamais consegui falar com ele sobre a tortura. E nós ficamos casados tantos anos. Nós temos dois filhos juntos, nós temos netos juntos. Com outras pessoas eu consigo falar, mas com ele eu não consigo falar. Já tentei, aí começo a chorar.”
Robêni foi condenada a quatro anos e meio de prisão por causa da tradução do livro Da Guerra; cumpriu dois anos, a maior parte no Presídio de Tiradentes, na torre das donzelas, local onde só ficavam presas políticas. Ela saiu em liberdade condicional e com uma recomendação do juiz de que voltasse a estudar ou trabalhar no máximo em 45 dias. “O juiz se chamava Nelson Guimarães, ele era violento, gritava com a gente e gritou comigo que se eu voltasse a ter qualquer participação política eu iria acordar na calçada de Campinas (onde morava) com a boca cheia de formigas”. Robêni não seguiu o conselho do juiz, continuou na luta política, pelos direitos humanos, pela liberdade de pensar diferente de quem está no poder. Ela se tornou professora, fez mestrado; ajudou a fundar o PT – Partido dos Trabalhadores; foi subprefeita de Barão Geraldo, distrito de Campinas, por quatro anos (2002 – 2006) e hoje, aos 80 anos, sente satisfação por ter ajudado a democracia no país e as novas gerações, como seus netos, a terem uma preocupação com os outros, com questões sociais pelas quais tanto batalhou: “Eu acho que dei minha contribuição e continuo dando. Passei minha luta pra minha família.”


O Brasil daquela época era o Brasil dos militares que deram o golpe na democracia brasileira, em 1964. Rosemeire Nogueira, ou Rose Nogueira como é mais conhecida, afirma que o golpe não foi no dia 31 de março como está registrado na história oficial; foi sim, diz ela, no dia primeiro de abril. E não foi uma mentira, mas sim uma verdade dolorosa que durou longos 21 anos. Foram 7.670 dias e noites de medo, de prisões arbitrárias, torturas, mortes, desaparecimentos, vidas destruídas para sempre.
Rose tinha 23 anos quando foi presa. Ela trabalhava no Jornal Folha da Tarde, na capital de São Paulo.
''Quem passa por uma experiência dessas não pode esquecer e não tem o direito de esquecer porque tem a obrigação de contar para as próximas gerações o que aconteceu no Brasil daquela época.'' (Depoimento ao Memorial da Resistência -SP)
ROSE NOGUEIRA
Era dia 4 de novembro de 1969, mesmo dia do assassinato de Carlos Marighella, fundador da ALN – Ação Libertadora Nacional, o maior grupo armado de oposição aos militares. A jornalista havia acabado de dar à luz a um menino, exatos 33 dias, quando foi levada, assim como o marido, o também jornalista Luiz Roberto Clauset, para o DOPS.
No Departamento de Ordem Política e Social, foi torturada pelo delegado Sérgio Fleury. Em depoimento ao Memorial da Resistência, Rose o descreve como uma pessoa “absurda, dava medo até de olhar para a cara dele”. Os homens que trabalhavam na equipe de Fleury eram tão violentos quanto o chefe da OBAN – Operação Bandeirante, órgão repressor e de tortura, um esquadrão da morte.
A jornalista sofreu violências físicas, psicológicas e sexuais enquanto esteve no DOPS. Puérpera, seus seios estavam cheios de leite. No Relatório da Comissão Nacional da Verdade (2014), contou como foi tratada por um dos seus algozes: “Eu estava sangrando muito e eu não tomava banho, eles não deixavam tomar banho. E tinha o leite e cheirava azedo. E eu estava sangrando. Aí eu apanhei porque estava sangrando e ele ficou com nojo. Aí eu apanhava porque eu estava fedida.”
Rose não consegue esquecer o dia em que tentava se limpar do sangue por causa de uma hemorragia e um torturador chegou com um jornal e mostrou para ela o título de uma reportagem: “Miss Brasil ganha concurso da vaca leiteira”. Como ela tinha leite em seus seios, ele a apelidou de miss Brasil e esfregou o jornal no corpo nu de Rose gritando que ela era uma “vaca leiteira, vaca terrorista”. Impedida de amamentar, Rose foi forçada a tomar uma injeção: “Veio um enfermeiro logo depois, pra me dar uma injeção pra cortar o leite. Porque esse Tralli [torturador] dizia que o leite atrapalhava ele. Então, essa foi também uma das coisas horríveis, porque enquanto você tem o leite, você está ligada com o seu filho, né? Me deram uma injeção à força, eu não quis tomar, briguei e tal, empurrei, aquela coisa. Ele me pegou à força e deu injeção aqui na frente, na frente da coxa. Depois ele me falou: ‘Cortar esse leitinho aí, tirar esse leitinho’. E o leite secou. Além dessas agressões, a jornalista sofreu abuso sexual enquanto esteve no DOPS. “Outra coisa é que eles me tiravam a roupa, tinha uma escrivaninha e eles me debruçavam nua com o bumbum para cima e eles ficavam enfiando a mão. Penetração, não tive. Ele me beliscou inteira, esse Tralli. Ele era tarado.” O Relatório da Comissão Nacional da Verdade deixa claro que “os crimes sexuais não se limitam à violência física, podendo, inclusive, não envolver contato corporal, como é o caso da nudez forçada.”
Rose Nogueira foi presa porque deu apoio a membros da ALN. Ela cedia o apartamento para que eles se reunissem, mas ela e o marido não participavam desses encontros, os dois ficavam no quarto. Certa vez, recorda com carinho, Carlos Marighella participou de uma dessas reuniões e deu de presente a ela um livro sobre parto sem dor. Uma breve pausa na dor que sente ao se recordar do momento que ficou sem o filho e sem poder amamentá-lo. O bebê, assim como seus sogros e pais foram levados para o DOPS e usados para ameaçá-la a contar o que sabia, “mas eu não sabia de nada”. Na véspera do Natal, em 1969, com prisão preventiva decretada, foi transferida para o Presídio Tiradentes, ficou na torre das donzelas e dividiu a cela com pelo menos 50 mulheres ao longo de nove meses de prisão, entre elas Dilma Rousseff: “Ela era uma moça de óculos, estudiosa, bem-humorada, colocava apelido em todo mundo”, contou em entrevista à Revista Novo Tempo. Depois de solta, a jornalista continuou a ser vigiada até 1972. Foi julgada e absolvida do crime que não cometeu.
Por causa da infecção puerperal que teve durante sua detenção no DOPS, Rose Nogueira nunca mais pôde ter filhos, ficou estéril.
Essa é uma das cicatrizes da tortura. A outra, são os resquícios da ditadura na “filosofia” da polícia militar. Rose sempre reforça em suas falas que “nos ensinamentos, treinamentos da polícia militar ainda existem muitos conceitos daquela época. Eles trabalham com a doutrina da guerra, onde o outro é inimigo, o outro é a população.”


Filha de pais semianalfabetos - a mãe trabalhava numa fábrica de tecidos, o pai tinha um caminhão de gasolina, os tios eram todos pedreiros - Vilma Aparecida Barban construiu uma história diferente de sua família. Com o apoio dos pais, fez da educação uma meta. Ela nasceu em Campinas em 1946, se tornou economista, educadora, pesquisadora, fez mestrado em sociologia. Ela é uma das centenas de mulheres que participaram ativamente da luta contra a ditadura militar; muitas morreram, outras estão desaparecidas, várias passaram pelas mãos de torturadores.
''Então você ficava na cela e tinha aquele barulho de chave e todo mundo já ficava, tipo, quem será de nós que vai?''
VILMA APARECIDA BARBAN
Carregam no corpo e nas lembranças as marcas das agressões. Como esquecer? A dor torna-se maior porque os torturadores não foram condenados pelos crimes de lesa-humanidade e se beneficiaram da Lei de Anistia de 1979. Vilma tem uma opinião sobre a Anistia do Brasil: “Eu acho que é uma vergonha em termos do que a justiça deve ser, quer dizer, como é que você, do Estado, anistia a si próprio? Torturador e torturado ficam na mesma categoria?”
Antes de chegar à universidade, já a partir do colegial, ela trabalhava durante o dia e estudava à noite. E desde essa época tinha preocupação social; envolveu-se com o grêmio estudantil e com um grupo que dava aulas na periferia da cidade. A inspiração para ensinar vinha do “método” de Paulo Freire que, grosso modo, utiliza a própria realidade do aluno, sua perspectiva e contexto, na alfabetização de adultos. Ao entrar no curso de biologia na USP e passar a morar no CRUSP, o conjunto residencial da universidade, Vilma se envolveu no movimento estudantil. Ela entrou para o Partido Comunista e depois para a ALN – Ação Libertadora Nacional. Era um tempo de revolta contra o golpe de 1964, tempo de protestar e lá estava Barban em meio a milhares de outros estudantes em manifestações públicas.
A campineira tinha 23 anos quando, na madrugada do dia 17 de dezembro de 1968, numa verdadeira operação de guerra, o exército com seus tanques e soldados cercaram o CRUSP. Quatro dias antes, o general-presidente Artur da Costa e Silva assinara o Ato Institucional número cinco (AI-5) que cassava todas as garantias institucionais. Iniciavam-se os anos mais sangrentos da ditadura. Os estudantes moradores do residencial, como Vilma, que não tinham condições de pagar por moradia, ou porque eram de outras cidades, ou porque moravam em bairros distantes, não ofereceram nenhuma resistência. Dos 1.800 que viviam oficialmente na moradia estudantil, havia naquela madrugada 800, a maior parte foi liberada rapidamente do DOPS. Vilma ficou um dia detida e, quando saiu, teve que se mudar para um apartamento junto com uma colega, no bairro de Pinheiros, não era seguro voltar ao CRUSP.
Em outubro de 1969, Vilma foi presa pela segunda vez. Em 2014, no depoimento à Comissão Nacional da Verdade, diante do que viu passar outras pessoas, relativizou a própria dor: “Quando eu penso nas pessoas que eu vi aos pedaços, você faz uma gradação e fala: ‘...bom, não me deixaram aos pedaços’.” Ainda que julgasse que a sua dor era menor do que de outras presas e presos políticos, descreveu o passo a passo das agressões físicas enquanto esteve na OBAN – Operação Bandeirantes: “Tapas, choque-elétrico nas mãos, nos pés, nas pernas - eu não tive isso de choque na boca - e muita pressão psicológica. Eu levei um monte de choque, não fui para o pau de arara”. Vilma ficou em torno de quinze dias na OBAN, depois foi levada para o DOPS com um grupo de pessoas: “Era um horror porque eles pegavam um de noite, alguém que desaparecia e o terror maior de todo mundo no DOPS era que tinha o Fleury. Se eles nos chamam, não sai vivo, era um cenário de horror. Muita gente machucada, estropiada, muitos caras que iam para a sala de interrogatório arrastados porque tinham que ir e não conseguiam mais ficar em pé”.
Do DOPS foi levada para o Presídio Tiradentes, chegou num micro-ônibus com outras mulheres e ficou na chamada “torre das donzelas”. Para Vilma, a convivência com outras mulheres da torre foi como estar em uma universidade: “Até a Dilma estava lá; tinham pessoas magníficas, assim, magníficas no sentido de quanto que contribuiu porque era uma vida disciplinada e muito. A gente estudava, fazia grupo de estudo, fazia ginástica, fazia comida era... para não deixar ninguém se abater.”
Das mulheres que ali estavam, ninguém saiu ilesa das torturas psicológica e físicas. Vilma Barban, durante o testemunho à CNV, reclamou de sua memória: “Eu não confio na minha memória, eu tenho brancos e sempre tive. Tenho um pouco da esclerose da idade”. Mas a respeito do tempo encarcerada sem nenhuma acusação formalizada, a memória de Vilma não falhou: “Eu fiquei de outubro de 69, eu não tinha culpa formalizada, e aí começa o julgamento, em 71, sendo que em agosto de 71 encerra o julgamento e eu sou liberada porque não conseguiram provar nada.”
Vilma Barban morreu em 2018, deixou um legado de luta contra a tortura praticada pelo Estado, contra a tortura de gênero que desqualifica a mulher. Vilma, quando perguntada pela CNV a respeito da igualdade de oportunidade nas organizações, fez uma breve análise sobre esse assunto: “Entrou para a luta, mas a relação é machista, é autoritária e é difícil mesmo, não é? Agora, eu não sei, digamos, a nível da escala de poder na ALN ou nas outras organizações, eu não posso responder isso. O que eu percebo são nas relações pessoais que as pessoas tinham com os seus companheiros, fosse ele da luta ou não, mulheres extremante conscientes, mas que tinham, sim, um marido e quase apanhavam em casa. Então eu acho que a igualdade de gênero ela ainda é uma luta a ser vencida. É uma briga, um embate feio ainda.”