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''QUEM ACHARIA NORMAL, EM SÃ CONSCIÊNCIA, LEVAR ALGUMA CRIANÇA PARA VER OS SEUS PAIS PRESOS? É DE UMA DESUMANIDADE INACREDITÁVEL O QUE ACONTECEU''

CLEIDI PEREIRA

O ano era 2014. A jovem jornalista Cleidi Pereira, repórter do jornal Zero Hora, de Porto Alegre, estava diante de Carlos Alberto Brilhante Ustra, um coronel da reserva e reconhecido pela Justiça como torturador. Brilhante Ustra comandou, em São Paulo, de 1970 a 1974, o DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna), a “sucursal do inferno”. Ustra usava os codinomes de doutor Tibiriçá ou doutor Silva e foi responsável direta e indiretamente pela tortura, morte e desaparecimento de militantes de esquerda que lutavam contra a supressão dos direitos civis pós-golpe de 1964. A última entrevista de Ustra só foi possível por causa da insistência da jornalista, que não desistiu na primeira recusa. A entrevista publicada no Zero Hora, em 2014, se tornou anos depois, em 2025, o livro Confissões de um torturador – A última entrevista do coronel Ustra, da Editora Insular. Desde 2017, Cleidi Pereira mora em Portugal, onde fez mestrado em Ciência Política e atualmente faz doutorado em Sociologia, tendo como objeto de estudo a violência obstétrica contra mulheres imigrantes. Cleidi é também autora do livro Entre a cruz e a espada: a (des)penalização do aborto na América Latina, publicado pela Editora Insular, em 2021. Na entrevista dada ao site As Vozes da Resistência, o tema é exclusivamente a respeito da última entrevista do coronel Ustra, da negociação, dos “embates” quando o assunto eram as torturas e a forma como Brilhante Ustra minimizou o sofrimento de suas vítimas.

“Quem acharia normal, em sã consciência, levar alguma criança para ver os seus pais presos? É de uma desumanidade inacreditável o que aconteceu.” 

Eu gostaria de iniciar a entrevista com uma passagem do encerramento da sua entrevista com o coronel Brilhante Ustra.

Nela, você diz que, após um café com ele e a esposa Joseíta, ao sair, “seu estômago pesava e a cabeça latejava”. 

Embora eu faça parte da geração da Constituição Cidadã, eu nasci em 1988, tenho certo distanciamento histórico com o tema, ou seja, não sofri diretamente, ninguém da minha família sofreu diretamente o impacto de ser preso, perseguido, torturado. Eu acho que, enquanto sociedade, a gente carrega uma ferida, um trauma coletivo. E esse momento final da entrevista talvez possa ser um resumo disso, porque eu acho que foi o distanciamento histórico que me permitiu fazer esse movimento. Apesar de ter tido, em alguns momentos, o dilema ético de entrevistar o Ustra ou não, eu acho que esse momento foi muito simbólico por isso, é quando vem à tona algo que não se explica, ou seja, são as sensações físicas, é o corpo respondendo àquela situação de estresse, o que é muito “engraçado”, porque ali eu estava numa posição de interrogadora, de alguém que estava fazendo as perguntas. Foram duas horas e meia de entrevista e foi muito tenso, mas eu sempre tentava equilibrar com perguntas mais amenas, perguntas sobre quanto tempo ele não ia ao Rio Grande do Sul, a opinião dele sobre alguns assuntos factuais, mas depois vinha aquele bloco mais pesado sobre os crimes, sobre tortura, sobre a participação dele, enfim! Eu só queria sair daquele lugar, daquela casa, até porque a entrevista termina e a última frase que eu tenho na gravação da entrevista é a Joseíta dizendo que queria me mostrar uma coisa, era um álbum que eu descrevo no livro, que eu imagino que é um álbum de família, mas, quando ela me apresenta o álbum, é um álbum com recortes de jornais, com imagens e com cartas dela e de repente me deparo com uma imagem de um homem pendurado num pau de arara. Em relação a essa cena, cabem muitas interpretações: o que leva uma pessoa a apresentar esse material? “Olha aqui, então, né?” O Ustra passa toda a entrevista, toda a vida negando, só que, naquele momento, ele comete ali o deslize e admite o uso de interrogatórios contínuos, privação de sono, mas fica muito dúbio; ele nega e depois me mostra algo que dá a entender, né? E eu estava numa situação em que tudo o que eu queria era sair dali. É difícil de descrever, mesmo hoje, mesmo tendo passado tanto tempo, eu lembro claramente daquela memória que fica no corpo do que eu senti nos momentos finais da entrevista. Claro, eu falei do clima de Brasília, gravei um vídeo com ele; eles me ofereceram um café, tinham preparado aquela mesa de café da tarde, eu comi ainda alguma coisa, mas senti aquela sensação de que a comida não desce bem, eu já tinha chamado o táxi, porque tudo o que eu queria era sair daquele ambiente, me distanciar daquilo. Eu acho que está relacionado não só com a tensão da entrevista, mas com esse trauma coletivo que a gente carrega enquanto sociedade. Por mais que eu não tenha vivido esse período, eu acho que a gente carrega de alguma forma essa cicatriz também. 

É inevitável sentir esse desconforto, essa “culpa”, como você diz, ao dar voz a um torturador que, claro, negou que tenha torturado presos e presas políticos. Mas é importantíssimo ouvir essas pessoas também; elas fazem parte da nossa história. 

Claro, é o papel que a gente tem enquanto jornalista, essa busca pela verdade. E, como repórter, eu estava numa posição completamente diferente da que eu estou agora, enquanto autora de um livro em que eu trago o torturador no título, eu faço questão de marcar a posição sobre o que se trata, que é “Confissões de um Torturador”. Afinal, a Justiça o reconheceu como o primeiro militar torturador. E o livro faz esse trabalho mais completo, digamos, de trazer essa avaliação, essa análise crítica, de trazer mais depoimentos, de trazer essa pesquisa com a biografia das vítimas. No relatório final da Comissão Nacional da Verdade, uma das seções é sobre os mortos e desaparecidos. Aí, eu fiz esse trabalho de listar todos os nomes em que o Ustra aparece como um dos autores, aparece na cadeia de responsabilidade. Então, claro que o livro faz esse trabalho mais completo. Agora, como repórter, o que muitas vezes a gente também tem a nosso favor é essa máscara que nos protege muito, essa “máscara da neutralidade”. O Ustra não sabia o que eu pensava sobre ele. E é um jogo, não deixa de ser um jogo. E aí, por exemplo, a gente acaba usando muita condicional: “Os crimes que o senhor teria cometido”... Agora, eu sabia quem era o Ustra, eu sabia os crimes que ele tinha cometido, os processos que ele respondia por tortura, ocultação de cadáver, mas uma coisa é a gente ter o conhecimento, ter essas informações, e depois quanto mais eu me informava, quanto mais eu lia e quanto mais via documentários, quanto mais eu me aprofundava nesse trabalho de pesquisa, nessa negociação da entrevista para que ele aceitasse me receber, mais vinha esse...; eu não diria culpa, eu acho que é o dilema ético; era esse arrependimento de ter sugerido essa pauta porque não foi ninguém que apareceu lá do jornal e disse: “Olha, vai fazer uma entrevista com essa pessoa”. 

Por que você sugeriu essa entrevista ao jornal Zero Hora, de Porto Alegre? 

O jornal tinha recém começado uma seção nova que se chamava “Com a Palavra”. Era um espaço para entrevistas mais amplas, ou seja, tinha normalmente umas três páginas do jornal na edição de domingo. 

 

A entrevista foi em 2014? 

Sim, em 2014. Eu tinha 26 anos. É importante destacar que era um momento de finalização dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, ainda não tinham saído os relatórios finais. Foi em dezembro daquele ano. Outro marco histórico foram os 50 anos do golpe civil-militar no Brasil. Então, tinha toda essa contextualização. Mas o momento em que tive essa ideia foi quando li uma nota num jornal de circulação nacional sobre uma das movimentações de um dos processos em que o Ustra era acusado pelas famílias das vítimas, e a nota lembrava que ele era “o gaúcho de Santa Maria”. E o jornal Zero Hora é conhecido por ser muito bairrista. O jornal estava sempre procurando um “olhar” em busca dos gaúchos no mundo; enfim, acontece alguma tragédia, alguma coisa, sempre vão buscar essas pessoas que tenham relação com o Estado. E aí, claro, o Ustra é um personagem histórico e mais até após a morte dele que passou a ter a memória exaltada; a trajetória dele talvez tenha ganhado até um pouco mais de relevância; e tem esse viés, o de uma pessoa que participou ativamente e se tornou um dos símbolos da ditadura, em

função de tudo o que aconteceu, em função da primeira denúncia pública da Beth Mendes, em 1985, que foi a primeira pessoa a denunciá-lo como torturador; depois, a ação declaratória da família Teles, ali nos anos 2000. No livro, também faço o resgate dessa história, destacando a importância da atuação de muitas mulheres nesse sentido de se preservar a memória e de, por esse caminho, tentar fazer alguma justiça, porque o Ustra morreu impune, morreu indo fazer fisioterapia, levando o neto ao médico, colocando os livros dele no correio e enviando para todo o Brasil. Manteve, durante quase dez anos, ele e a Joseíta, um site que tinha o mesmo nome do livro (“A Verdade Sufocada”) e com a ascensão do Bolsonaro ficou muito claro para mim o papel do Ustra também como mentor ideológico de tudo o que o Brasil viu. 

Então são dois momentos: em 1985, quando a Bete Mendes, na época deputada federal, se vê, no Uruguai, diante do torturador dela. E em 2016, durante a votação para início do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, quando, ao dar o “sim”, Jair Bolsonaro faz uma homenagem ao coronel Ustra. Até aquele momento, a maioria dos brasileiros e brasileiras nunca tinha ouvido falar de Ustra. 

Sim, é um dos momentos daquela virada de chave, os momentos “turning point” da história, porque o Ustra tinha morrido fazia seis meses, eu acho; ele morreu em outubro de 2015 e o voto do Bolsonaro foi em abril de 2016. E esse é o momento em que ele chama a atenção para aquela figura histórica do Ustra e já começa esse revisionismo histórico, uma estratégia perversa. Ele associa ainda o Ustra à Dilma, “o pavor da Dilma Rousseff”. E eu tentei entrevistar a Dilma para o livro, mas não consegui, porque eu queria ouvir dela, pois não tem registro histórico de que o Ustra tenha torturado a Dilma. A Dilma cita outros nomes como torturadores. Bolsonaro não só vincula erroneamente o Ustra à Dilma, uma estratégia tão perversa, porque ele pega ali numa ferida não só dela, uma ferida social, digamos assim, e a partir daquele momento, Bolsonaro faz essa estratégia de capitalizar, em termos políticos, uma narrativa falsa, uma narrativa como é a estratégia também da extrema-direita. E a memória do Ustra passa a ser exaltada a partir daquele momento. Nos atos de campanha do Bolsonaro, de pré-campanha, as pessoas passam a usar aquelas camisetas e os cartazes “Ustra vive”. Os filhos do Bolsonaro também fizeram isso, o que é chocante. Se esse gesto dele tivesse sido punido, como houve também tentativas nesse sentido de quebra de decoro parlamentar, a história do país teria ido para outro rumo. E naquele ano, também, o Bolsonaro traz toda a atenção para essa figura e para o livro do Ustra “A Verdade Sufocada”, um livro de 600, 700 páginas, e que é toda essa tentativa de revisionismo histórico, ou seja, é o Ustra tentando contar a sua versão, tentando colocar goela abaixo da história essa versão falsa dos fatos, essa interpretação de que o Brasil estava sob uma ameaça comunista e que eles foram heróis. E aqui é interessante ressaltar que na questão familiar do próprio Ustra parece haver um trauma com o “comunismo”, com figuras comunistas como Luís Carlos Prestes. 

Qual trauma? 

O pai do Ustra e o tio dele fizeram parte da Coluna Prestes (1925 – 1927). E o Ustra sempre disse: “Mas eles não sabiam que o Prestes era comunista”. E o tio do Ustra morreu durante uma das marchas, durante o deslocamento. O Ustra foi uma criança que cresceu ouvindo histórias sobre o “monstro” do comunismo. E, em 2016, também me chamou a atenção, ele teve muita dificuldade para publicar o livro dele; ele acabou pagando do próprio bolso a primeira tiragem e esse livro entrou para a lista dos mais vendidos do país naquele ano e virou a bíblia da direita, da extrema-direita. Tanto é que um familiar dele que usa o mesmo nome “coronel Ustra”, foi eleito vereador de Porto Alegre e hoje reproduz a mesma estratégia do Bolsonaro; ele leva o livro do Ustra para a tribuna, presenteia os colegas vereadores de Porto Alegre com o livro. É uma disputa de narrativa histórica. E esse é o perigo de deixar uma pessoa falando sozinha, né? E a tarefa que a gente tem enquanto sociedade de preservar a memória, de contar essa história, de estar sempre relembrando porque às vezes a gente acha, “não, isso aconteceu, isso é fato”; “a terra é redonda, não se discute isso”. Mas não são coisas que são garantidas, não são batalhas que são vencidas e pronto! Eu acho que, principalmente, quando se trata de democracia, história, a gente tem a tarefa de estar sempre mantendo acesa essa chama, a chama da verdade. E o Ustra, durante muitos anos, foi a pessoa que falou sozinha, que ficou contestando sozinho até surgir o trabalho da Comissão Nacional da Verdade, mas ele era a principal voz de oposição e que acabou arregimentando muita gente com a sua teoria, principalmente com o apoio do Bolsonaro, a partir de 2016, depois da morte do Ustra. 

E o Ustra disse que “foram só 434 mortes, na Argentina foram milhares”. Ele minimiza a violência da ditadura de 1964 a 1985. 

O Brasil não tem políticas de memória, não puniu essas pessoas, o que abriu brechas, deu margem para esse revisionismo. E se a gente tivesse esse conteúdo no currículo escolar; se tivéssemos museus; se todos os anos contássemos as histórias dos impactos da ditadura na vida das pessoas; e se a gente tivesse essa lembrança constante, sempre relembrando o que aconteceu? Eu moro aqui em Portugal há oito anos e eu sempre achei muito bonito, embora agora também está se provando que não basta, a celebração do 25 de Abril (Revolução dos Cravos – 1974), que é feriado, as pessoas vão às ruas. É emocionante ver as pessoas andando com cravo, um livro e um cravo embaixo do braço, saem do mercado com os cravos. E isso durante muito tempo serviu como um escudo para Portugal porque eu me lembro que quando me mudei para cá, em 2017, nas aulas de mestrado de Ciência Política, o professor vinha com as teorias dele do porquê Portugal era um país que não tinha extrema-direita. Portugal não tinha, não havia partidos, não havia representação no Parlamento. Em questão de cinco anos isso mudou completamente. Mas também Portugal não é uma ilha, está inserido num contexto global de avanço da extrema-direita, dos movimentos conservadores e populistas. Mas em questão de cinco anos surgiu um partido, o “Chega”, que tem um modus operandi muito parecido com o Bolsonaro. Esse partido, em cinco ou seis anos, se tornou a segunda maior força política; pegou a imigração como bode expiatório e se transformou na segunda maior força política, com o apoio dos brasileiros também que vivem aqui. É inacreditável! 

Cleidi, foi difícil a negociação com o Ustra para dar a entrevista? 

Eu não falei com ele durante toda a negociação, ou seja, essa insistência da minha parte, eu falava com a Joseíta. O primeiro contato foi com ela. Eu costumo dizer que foi muito fácil conseguir a entrevista, porque bastou eu consultar a lista telefônica. E isso também é muito sintomático de por que uma pessoa assim não precisa se esconder? Estava lá com o telefone da casa, público de alguma forma. E aí eu liguei, quem atendeu foi a empregada da casa, confirmei que era da casa dele, e aí eu passei semanas que eu ligava, acho que uma vez por semana e conversava com a Joseíta. Claro que ali, a meu favor, eu tinha essa questão da própria neutralidade, imparcialidade, de olha, “queremos ouvir o Ustra, a sua versão”. Era também um jornal do Rio Grande do Sul que ele tinha essa familiaridade; ele conta que sempre lia quando podia. Depois, um outro fator que acabou contribuindo, que ele admite, é que o jornal tinha sido o único a publicar uma nota sobre o lançamento do livro dele; e eu não representava nenhuma grande ameaça, ou seja, era uma jovem repórter. 

Você leu o livro dele.  

E esse foi outro ponto determinante, foi o momento em que eu decidi comprar o livro e usar isso a meu favor e falar para a Joseíta “olha, estou com o livro em mãos, quero saber se eu começo a leitura, foi difícil encontrar o livro”; e de alguma forma eles admitiram depois que isso os sensibilizou. Quando a Joseíta diz que ele concordou em dar a entrevista, eu peço para falar com ele, para agradecer, para ter esse primeiro contato mais direto, e ele faz a brincadeira que eu conto no livro, que ele dá risada e diz que “se eu não divulgasse o livro dele, ele ia torcer o meu pescoço”. 

Apesar do tom de brincadeira, essa fala revela um pouco da personalidade dele? 

Eu lembro que naquele momento eu fiquei pasma e eu disse “não, claro, eu vou falar do seu livro, eu estou lendo o seu livro”. Mas aí eu desliguei, coloquei o telefone no gancho e olhei para a minha colega e eu disse a ela que ele falou que “ia torcer meu pescoço”. Essa fala é muito reveladora sobre a personalidade, sobre o histórico, sobre a forma como ele lidou a vida toda com essas, entre aspas, acusações; o desprezo também pela vida humana, pelas pessoas, porque essa estratégia de desumanizar o oponente ela permite isso, permite essas brincadeiras e, em última instância, permite que um determinado grupo seja exterminado, aliviando de certa forma essa culpa cristã. Ele falava muito de Deus, isso também me chamou a atenção. 

Você estava diante de um homem de mais de 80 anos, cabelos brancos. Você, em algum momento, duvidou de que ele era de fato um torturador? 

Eu tive essa sensação de perceber claramente, de ter muita consciência do que eu estava sentindo, do que eu estava fazendo, diante de quem eu estava e de como ele fazia esse jogo, do policial bom, do policial mau; do torturador e do avô. E, tirando aquela brincadeira inicial, os momentos em que ele se exaltou, havia momentos que ele se exaltava, ali ficava claro para mim, vinha à tona quem de fato ele era. E sim, houve momentos em que eu tive essa sensação de “olha, é um senhor de 80 e poucos anos, é um avô”. E eles também, acho que se aproveitando disso, num determinado momento a Joseíta fala isso, “ele poderia ter sido seu avô se tivesse sido designado para essa função”. Eu me lembro claramente, durante a leitura do livro do Ustra, eu ainda não tinha me encontrado com ele, em algum momento me veio essa sensação do tipo “e se?” Mas sabe quando você não deixa o pensamento avançar? Porque nós somos seres humanos, a gente tem esse diálogo interno e mesmo nós não somos inteiramente bons. A gente tem a luz e a sombra. E eu acho que essa história da banalidade do mal da Hannah Arendt, a gente conhecer a nossa sombra permite a gente colocar esse freio. E eu lembro de estar lendo o livro e de o meu pensamento começar a ir por esse lado de “e se ele estiver falando a verdade?” Sabe, vem o outro assim e agarra, segura e diz “não, não, não”. 

Eu quero retomar a história do encontro da então deputada federal Bete Mendes, em 1985, com o coronel Ustra, quando ela o identifica como sendo seu torturador em 1970. Porém, ele desqualificou essa denúncia.  

Eu acho que essa estratégia dele de desqualificar as vítimas e de menosprezar as acusações é estratégico e é bastante revelador também. Para mim, a entrevista começa, de fato, depois do momento “quebra-gelo”, quando eu listo todos os crimes dele, o número de mortos, de torturados, e pergunto se ele tem dormido bem à noite? Ali, ele poderia ter terminado a entrevista, mas ele respondeu a todas as perguntas e, a partir daquele momento, ele começa a falar sem parar: “Então tá, vamos falar de todos os processos em que eu sou acusado”. E ele começa a falar, falar, falar. Então, talvez ali ele tenha feito a primeira menção a Bete Mendes. 

A denúncia da Bete Mendes foi crucial? 

Sim. A Bete Mendes era deputada e ela fazia parte da comitiva de uma primeira viagem internacional do Brasil, depois do fim da ditadura. Era o governo Sarney (1985 a 1990), eles vão ao Uruguai, e no momento de eles descerem do avião, no aeroporto, tem uma comitiva para recepcioná-los e o Ustra estava na comitiva. O que eu li no depoimento da Bete Mendes, e em entrevistas que ele deu, é que, nesse momento, ela cumprimenta as pessoas, entre elas o Ustra, que era adido militar junto à embaixada do Brasil no Uruguai, ou seja, de certa forma, pode até ser interpretado como um prêmio para a carreira dele. Uma forma também de proteção do exército, de tirar essas figuras temporariamente de circulação, e isso sempre foi muito chocante para mim imaginar o que que ela sentiu, como é que foi? E aí, ela diz que, claro, com aquele impacto o cumprimentou e aí teve uma festa, depois ela vai para o hotel e ela passa mal, porque na festa ela conversa com o casal, a Joseíta e o Ustra; naquele momento o que ela faz é “eu estou aqui cumprindo, desempenhando um papel”, tira forças de não sei de onde para superar aquela situação, para pensar também o que faria com isso, e na volta ao Brasil ela decide fazer uma denúncia pública. E aqui eu acho que um outro ponto importante de se ressaltar é que, àquela altura, os nomes dos torturadores, a identidade deles era muito conhecida nos meios da militância, entre os ativistas, mas não eram conhecidos da sociedade. Quando a Bete volta à Câmara, ela faz um pronunciamento e distribui uma carta aberta ao presidente Sarney contando sobre o episódio, uma forma de protestar contra esse “prêmio”, de certa forma, que foi para ele. Embora em 1985 já tivesse a Lei da Anistia, foi aquele impulso de uma pessoa na busca por alguma forma de justiça, de que isso não caísse no esquecimento. Foi muito corajoso o que ela fez. Para o Ustra e para a família dele, foi o ponto em que eles passaram a contestar publicamente não só a Bete Mendes, mas foi o início dessa narrativa de revisionismo histórico. O Ustra debocha de certa forma da Bete na entrevista quando ele se diz muito confuso com a atitude dela porque, ainda durante a ditadura, num julgamento, segundo o coronel Ustra, a Bete Mendes foi a única que chorou perante o juiz e que ela se dizia arrependida. Ele usa esse episódio para dizer “nossa, ela era a mais velha, ela que doutrinava os jovenzinhos”. Mas depois quando ela foi julgada, na época da ditadura, “ah, ela chorou, ela se arrependeu, os pais dela até me agradeceram o tratamento que ela recebeu. E aí, passados tantos anos, ela vai fazer uma coisa dessas?”. E aí ele se refere ao episódio do Uruguai. 

A Bete Mendes confirmou isso? 

Após a publicação da entrevista do Ustra, em março de 2014, a Bete Mendes enviou uma carta ao jornal e ela foi publicada na íntegra. Ela fala sobre essas lágrimas, que eram “pelo sofrimento que eu tive nos dias em que fui torturada por ele e seus comandados no DOI-CODI, o que consta nos autos da auditoria militar”.  

E ele também desqualifica a família Teles, ele disse que eles (militares) cuidaram bem dos dois filhos da Amelinha e do César: a Janaína, com 5 anos, e o Edson, com 4 anos. 

Sim, e de novo, quando a gente se afasta disso e pensa: “Os pais (Amelinha e César Teles) e a tia (Criméia de Almeida), estão presos, quem acharia normal, em sã consciência, levar alguma criança para ver os seus pais presos?” Eu sou mãe, independentemente de qualquer situação de estresse, se preserva a criança acima de tudo. Nossa, é desumano. É o tal do “Ilícito absoluto”, título do livro de Pádua Fernandes (Ilícito absoluto: a família Almeida Teles, o coronel Brilhante Ustra e a tortura) que fala sobre esse processo da família Teles. É de uma desumanidade inacreditável o que aconteceu, né? E depois essa tentativa de dar essa invertida de “não, nós fomos muito bons porque, afinal, essas crianças estavam ali sem pai nem mãe, a família longe”. E a desculpa que ele dá é que ele precisou acionar alguém de não sei qual estado, né, para vir buscar as crianças.  

Quando você desqualifica a tortura sofrida, por exemplo, pela família Teles, pela Bete Mendes, é uma nova forma de tortura. 

Claro, é uma revitimização. 

Durante as duas horas e meia de entrevista, você sentiu a questão do machismo, da misoginia tanto em relação às mulheres presas políticas quanto a você? 

Em alguns momentos, sim. No meu caso, especialmente quando ele me chamava de “minha filha”; nos momentos em que ele ficava mais alterado, ele me chamava de “minha filha”. É essa tentativa de desqualificação, de lembrar da minha idade porque “não era da sua época, você não era nem nascida ainda”. E na questão da misoginia, eu até fiz uma pesquisa no livro dele, porque ele cita muitas vezes a Dilma Rousseff, muitas, muitas. E quando ele fala da Dilma dá para perceber não só a misoginia dele, mas de quem ele representa, do exército; e dá para entender por que é que a Dilma acabou sofrendo aquele golpe. Quer dizer, a misoginia é um dos pilares que sustenta isso. Em relação à Dilma, até parece uma certa obsessão. Tem um momento em que eu pergunto para ele sobre quem ele achava que tinha sido o melhor presidente do Brasil? Claro, ele fala que é o Médici, mas depois ele fala do governo do Lula e da Dilma, e aí para o Lula ele dá uma passada de pano, diz alguma coisa boa do Lula; agora, quando ele fala da Dilma, ele compara: “A Dilma, não, a Dilma era terrorista. O Lula nunca foi terrorista, mas a Dilma era terrorista”. Quando se olha para essa trajetória dele e dessas personagens que marcaram a trajetória dele, as mulheres estão muito presentes. A Bete Mendes; a Janaína (filha de Amelinha e César Teles) que foi a pessoa que teve a ideia de entrar com a ação declaratória; a Amelinha, a Dilma. E quando ele contesta, confronta, lembra e faz referência, a misoginia está ali presente, sim! 

Você citou Hannah Arendt sobre a “banalidade do mal”. A filósofa acompanhou o julgamento (1961/1962) que condenou à morte Adolf Eichmann, um dos principais responsáveis pela deportação dos judeus para campos de extermínio, a chamada “solução final”. O que chamou a atenção dela foi o fato de Eichmann dizer que como um “funcionário subalterno e sem autonomia”, cumpriu apenas sua função. Posição muito parecida com a de torturadores como o coronel Ustra, que também disse ter a “consciência tranquila e que dormia tranquilo”. É chocante! 

É chocante. Eu acho essa tentativa de o Ustra humanizar a sua imagem, a sua trajetória, minimizar os seus crimes, é essa “banalidade do mal” ou a banalização do mal que justifica, que permite isso. Ao contrário do que a Hannah Arendt fala, do funcionário burocrata que não pensa; não é o caso do Ustra. Ele era a pessoa que pensava, era a pessoa que agia de uma forma embasada ideologicamente e que tentava de alguma forma justificar seus atos. Quer dizer, “há uma ameaça comunista, eu recebi uma missão, um dever e vou cumprir com esse dever. E infelizmente, excessos podem ter vindo dos dois lados”. O que ele colocou dentro desses “excessos”? Não deixa de chamar a atenção a incapacidade de assumir o que foi feito, não tem justificativa, não tem perdão. 

Você descreve, em dois capítulos, as várias formas de torturas e as sequelas deixadas. Eu acho interessante quando você lembra que o espírito da tortura é masculino. Você vê diferença na tortura sofrida por mulheres e homens? 

É, me chamou a atenção quando nas férias de verão do ano passado (2024) eu visitei um museu na Espanha, um museu sobre a tortura e não tinha como eu não fazer esse link. Como é que a tortura foi parar no Brasil? A participação dos portugueses; o colonialismo que levou também a esses métodos que perduram até hoje. E no museu, me chamou a atenção que havia muitos objetos especificamente desenhados para a tortura de mulheres. E aí tinha essa frase que “o espírito da tortura era masculino”; e uma explicação também que durante muito tempo os órgãos genitais dos homens foram poupados, ou seja, tinha aparelhos específicos de tortura quando se tratava de mulher, de homossexuais. Mas achei interessante essa hipótese de que havia até uma certa cumplicidade entre o agressor e a vítima quando eles são do sexo masculino e que aí, no caso das mulheres, não só era explorado, falando na época da Inquisição, uma caça às bruxas que, na verdade, foi uma caça às mulheres, foi um genocídio de mulheres, um genocídio de gênero. É claro que hoje também há uma série de produções científicas, literárias que mostram não só o papel que as mulheres tiveram na resistência, no combate em si, mas também como essa tortura é diferente em se tratando de uma presa do sexo feminino. 

É um ódio à mulher, porque o lugar dela não é na resistência, e sim no ambiente doméstico; de cuidadora da família.  

São muitas camadas, são muitos cruzamentos, quer dizer, é uma mulher que está quebrando um estereótipo de gênero, né, ela não está de uma forma “bela, recatada e do lar”. Ela está na luta. Ou seja, isso é, digamos, um elemento explosivo nessa misoginia estrutural e internalizada do exército, dos torturadores. Por isso elas acabam por ser duplamente ou triplamente punidas. 

Durante a ditadura civil-militar, além da tortura física, a mulher também era violentada sexualmente; não que os homens não tenham sofrido agressões sexuais, mas na mulher era uma forma de colocá-la no “seu lugar”, uma maneira de desqualificá-la. 

Sim, sim, é isso mesmo. É perverso. Como mulher, é muito difícil olhar para essas histórias.  

O relatório final da Comissão Nacional da Verdade apontou que mais de 500 casos de presas e presos políticos, torturados, que passaram pelo DOI-CODI/SP, foram durante o comando do Ustra. Ele esteve envolvido diretamente em 60 casos de mortos e desaparecidos. Mas ele morre impune. 

Ele só não foi poupado, digamos assim, graças à atuação de mulheres, principalmente. Ele não teve “paz”, ou seja, os processos, as pessoas estavam sempre em busca de justiça. Ele conviveu, de certa forma, com essa ameaça. Eu percebi que ele morreu com alguns temores. A revisão da Lei da Anistia era um deles, e a possibilidade de ele ser punido, foram ameaças que o acompanharam até o fim, como os processos da família Teles, da família Merlino. Aquela preocupação de que “eu posso ser alvo de um atentado”, algo nesse sentido. Eu me lembro que uma das perguntas era sobre se ele tinha segurança?  Eles (Ustra e Joseíta) dizem que não e depois eles pedem “não, não põe essa palavra não, por favor, se puder tirar essa parte da entrevista, então tira, porque nunca se sabe, né?” Isso tudo para descrever que, embora ele mantivesse a sua rotina, sua militância até o fim; ele não foi punido no sentido de ter sido privado de liberdade ou mesmo alguma punição, alguma indenização, mas ele não teve paz até o fim da sua vida porque ele sempre conviveu com essas ameaças de uma possível revisão da Lei da Anistia ou de algum atentado, que era algo que eles temiam. Mas uma pessoa que fez o que ele fez, de qualquer forma não teria paz de consciência. 

O coronel Ustra justificou as ações dele porque era necessário combater o “comunismo” no Brasil. Infelizmente, essa narrativa se repete hoje.  

Eu acho que ele representa muito essa ideia da banalidade do mal, de como se pode fazer coisas absurdas com as pessoas a partir do momento em que se desumaniza os oponentes políticos, de um campo ideológico. Eu acho que também diz muito sobre a capacidade das pessoas de se convencerem ou encontrarem teorias para justificar os seus atos ilícitos e a capacidade de manipulação da história, das narrativas. E o Ustra representa uma parcela de uma geração que talvez tenha tido ali uma proximidade maior com as questões da Guerra Fria, porque ele precisou passar por esse convencimento. No caso dele, dá para fazer essa relação com o que ele conta que foi possivelmente uma infância alimentada pelo medo do comunismo, do fantasma do comunismo e de como depois ele faz toda uma trajetória militar, assim como seu pai e muitos familiares, e não consegue sair daquele lugar, e questionar e confrontar isso, ter esse senso crítico de pensar: “Mas será que é isso mesmo? Será que foi isso mesmo? Eu não sou meu pai. Eu não sou meu tio. Eu não sou os meus traumas. Eu posso fazer uma coisa diferente disso, né?” 

Para o Ustra, o Luís Carlos Prestes traiu a família dele porque seu tio morreu durante a marcha da Coluna Prestes e o Prestes se revelou um comunista. Por isso o comunismo é o grande fantasma? 

É o grande fantasma e é quase uma vida dedicada a buscar uma “justiça” para um trauma, uma questão familiar. E olha a consequência disso para milhares de famílias, para um país. E uma coisa também que foi muito marcante, assim, eu lembro que o Ustra se exaltou muito quando eu falei da Convenção de Genebra, que fala que mesmo em situações de conflito, de guerra, as pessoas têm o direito a enterrar os seus mortos. E esse é um outro ponto que eu acho que está relacionado com esse drama familiar dele, porque a família dele passou pela mesma situação quando o tio dele foi morto e, depois, o pai do Ustra teve que fazer o movimento de recuperar o corpo desse irmão. E o que o Ustra faz depois se não privar tantas famílias disso também? De um direito humano, de um direito ao luto, de chorar uma morte, de enterrar. De novo, claro, não sou da área de psicologia, mas tem muitos elementos de “como que uma pessoa acaba por fazer senão reproduzir esse trauma?” É a história do oprimido que sonha em ser opressor, em última instância. Eu acho que fala muito sobre o risco para o ser humano da inconsciência, de agir de forma inconsciente sobre os seus atos, sobre esse desconhecimento da história, e é um caminho que todos nós fazemos, enfim, a gente vai amadurecendo, vai aprendendo e vai desenvolvendo essa capacidade crítica. E eu acho que hoje, em tempos de inteligência artificial, de redes sociais, essa é uma parte nossa enquanto humanidade que está sendo sequestrada, né, essa capacidade de fazer essa análise crítica, de sair do lugar, do nosso lugar, mesmo pensando numa trama familiar; eu saio daqui, eu vou olhar para minha história, mas eu vou olhar de uma forma crítica e decidir agir conforme os meus próprios valores, claro, dentro do que são os valores universais. 

É respeitar o direito do outro de pensar e agir diferente do que consideramos o certo obviamente respeitando-se os direitos humanos, porque nem tudo é permitido. 

Sim, tem pactos dos mais básicos que estão sob ameaça. Esse é um dos pontos: o direito do outro existir e de nós seguirmos rigorosamente um passo a passo para julgar, para punir. Não, não se pode tudo, né? Tem coisas que são direitos humanos fundamentais. E depois, essa retórica que, inclusive acho que o Ustra fala na entrevista, aquele clássico “direitos humanos para os humanos direitos”. Não, não é assim! 

E daí ele exclui o que ele não considera humano? 

Sim, sim, quem é o humano, né? 

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