top of page
Âncora 1
WhatsApp Image 2025-01-29 at 11.30.53.jpeg

''AS PESSOAS DEMORAM MUITO A ACREDITAR QUE UMA MULHER DENTRO DA POLÍCIA, NA PERSPECTIVA DA DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA, TENHA COMETIDO VIOLÊNCIA CONTRA CRIANÇAS, CONTRA MULHERES.''   
 

LÍVIA LINCK

Por que nos chocamos quando uma mulher pratica a violência, ainda mais quando integra os mecanismos de violência de regimes ditatoriais? Esse é um tema tabu, pouco explorado a respeito de mulheres participantes de sequestros, torturas e mortes de presas e presos políticos na ditadura civil-militar brasileira (1964 – 1985). A professora e pesquisadora Lívia do Amaral e Silva Linck abraçou esse desafio ao fazer sua dissertação de mestrado sobre As Mulheres como Operárias da Violência – No Contexto da Ditadura Civil-Militar Brasileira. Lívia Linck é formada em Direito pela faculdade do Ministério Público do Rio Grande do Sul e mestra em Ciências Criminais pela PUC do Rio Grande do Sul, onde atualmente é doutoranda em História. Paralelamente aos estudos e pesquisas, Lívia Linck trabalha como assessora de uma defensora pública do Rio Grande do Sul, na Vara de Execuções Criminais de Novo Hamburgo. A dissertação As Mulheres como Operárias da Violência foi escrita durante a pandemia de Covid-19, tempos difíceis por causa das restrições de contato e exatamente por isso foi um trabalho árduo conseguir acesso às mulheres vítimas do sistema de repressão civil-militar. E a principal personagem dessa história, a algoz de muitos militantes, a tenente Neuza, um dos codinomes de Beatriz Martins, já havia morrido, em 2015. Você irá conhecer um pouco dessa história na entrevista com a pesquisadora para o Portal As Vozes da Resistência.

Lívia, o seu foco de estudo são as mulheres como autoras de delitos?

Sim, na minha jornada acadêmica, desde a graduação, eu sempre pesquisei essa questão das mulheres como operárias de violência, em algum contexto, algum recorte. A partir da minha dissertação de mestrado, eu acabei indo para o período histórico da ditadura civil-militar brasileira, momento em que eu me encontro até hoje na pesquisa do doutorado. Minha tese é sobre a Ação Democrática Feminina Gaúcha, que é o movimento conservador que teve aqui no Rio Grande do Sul, que apoiou o início da ditadura civil-militar brasileira, principalmente o golpe de 64. Foi um movimento um pouco menor do que esse movimento que aconteceu em São Paulo e no Rio de Janeiro, mas que também foi bem marcante.

Esse tema, mulheres como operárias da violência, é pouco usual nos estudos acadêmicos?

Eu sempre fui muito da pesquisa, eu participava de vários grupos de pesquisa, então até a temática do meu trabalho de conclusão era analisando um processo em que tinha uma mulher que era autora de delito de estupro ou tortura e condição análoga à escravidão. Eu analisava a perspectiva principalmente do Estado, como é que o judiciário via essa mulher, como é que os advogados, a defesa, como é que a acusação via essa mulher, como é que era a nomenclatura utilizada durante a audiência, por exemplo, e em que local que ela ficava? Aí eu

acabei usando esse projeto para entrar no mestrado. O professor José Carlos Moreira da Silva Filho, que foi vice-presidente da Comissão Nacional da Verdade-RS, aceitou me orientar porque, segundo ele, “a temática era muito diferente, exceção à regra total, e porque eu queria muito te apresentar um livro, porque há muito tempo eu li esse livro (A Casa da Vovó, de Marcelo Godoy) e eu tenho muita curiosidade de saber para onde foi a tenente Neuza? O que aconteceu com essa mulher?” O professor José Carlos me “apresentou” a Neuza e eu acabei indo para essa perspectiva da ditadura civil-militar brasileira; aí juntamente com o livro A Casa da Vovó, eu também comecei a pesquisar muito a autora Martha Huggins, uma autora estadunidense, e é ela que usa essas nomenclaturas de “perpetrador da violência”, “facilitador da violência”, “espectador da violência”, que são os conceitos que eu utilizo. Só que ela não tinha nenhum recorte de gênero, né? Então esses recortes eles eram unicamente masculinos e eu sempre gostei muito desse recorte de gênero e sempre pesquisei muito questões de gênero e aí eu acabei indo para essa vertente das mulheres como autoras da violência, participantes desse mecanismo da violência, por isso eu conheci a Neuza.

Qual foi a maior dificuldade de “encontrar” a tenente Neuza?

A grande dificuldade foi encontrar qualquer tipo de documento do Estado, da época que tivesse alguma informação dela, porque é difícil o acesso a esses documentos; a gente sabe que eles não são disponibilizados, principalmente denominando as pessoas que participavam de algum tipo de mecanismo da violência; e aos poucos documentos que eu tinha acesso, nenhum abordava sobre ela, então eu busquei nos tomos da Comissão Nacional da Verdade, do Rio Grande do Sul. Foi como achar uma agulha no palheiro, porque eu tinha que mapeando quem se relacionava com ela e a grande maioria era tudo por codinome, era complicado conseguir entender quem era quem? Ela, por exemplo, tem vários codinomes, ela tem o Neuza com “Z”; o Neusa com a “S”; Miúda e Tenente Bia. Então, às vezes falava “ah, a Bia”, e eu pensava “cara, quem é a Bia?” Então fiz todo esse mapeamento e muito a partir do livro do Marcelo Godoy, onde ele entrevista a Neusa, né?

Ela morreu antes de você conseguir falar com ela, certo?

Eu infelizmente não tive essa oportunidade porque quando eu adentrei no mestrado foi 2019, ela faleceu 2015, então eu até tentei encontrar alguma rede em que eu conseguisse de alguma forma conversar com alguma pessoa que se relacionava com ela ou algum familiar, enfim, mas a gente sabe que já é difícil quando a gente tenta fazer essa relação com alguma vítima da ditadura civil-militar brasileira; mais ainda quando a gente vai tentar entrar em contato com algum agente policial que participava daquele mecanismo de violência.

É um viés da violência da ditadura muito complicado?

É, é uma temática bem agressiva. Nem sempre as pessoas entendem que a minha pesquisa vai totalmente contra tudo o que foi disseminado nesse período histórico. Mas eu acho que faz parte da nossa história e eu acho que é importante a gente pesquisar e conhecer essas pessoas.

É um tema delicado discorrer sobre a mulher como agente de violência de Estado, admitir que a mulher é, sim, capaz de cometer atrocidades. No relatório final da Comissão Nacional da Verdade, de 2014, só tem nomes de torturadores homens.

A primeira questão é essa da mulher, quando a gente faz uma análise mais criminológica da mulher como cometedora de algum tipo de delito, a primeira ideia, principalmente do Estado, é abafar; tentar resguardar essa mulher até para a manutenção desse estereótipo, desse rótulo da mulher, de uma mulher mãe, uma mulher que cuida da sociedade, uma mulher atenta, empática, carinhosa e que jamais feriria alguma pessoa. Então a gente parte dessa máxima, e aí o que acontece? Quando eles não conseguem mais abafar por algum motivo específico, seja ele qual for, normalmente essa mulher é colocada como a algoz. Então a gente troca completamente a vertente dessa mulher de vítima e agora ela é a perpetrador da violência, vira a má, a vil, a prostituta, sempre ligada com essa questão muito sexual da mulher, essa sexualização muito forte da mulher. Além dessas duas perspectivas, tem uma terceira perspectiva quando a gente fala sobre mulheres, agentes policiais, nós temos novamente todo esse rótulo e esse local da polícia, que é um local novamente muito “sagrado”, onde a gente tem um rótulo e um estereótipo truncado e temos a ideia do abafamento. E a Neuza, para mim, é isso, né, esse abafamento de que essa mulher não seja vista de nenhuma forma possível para a gente não ter essa troca de rótulo; a gente expor essa mulher como perpetradora da violência. Algumas vezes eu ouvi sobre a tenente Neuza “ah, mas ela não torturou, ela participou da tortura, mas ela não torturou efetivamente”. As pessoas demoram muito a acreditar que existe uma mulher dentro da polícia, dentro de um mecanismo da violência, como foi o mecanismo da violência na perspectiva da ditadura civil-militar brasileira, que tenha cometido violência contra crianças, contra mulheres. E aí tu tinhas comentado que no encerramento da Comissão Nacional da Verdade a gente tem essa documentação onde a gente tem um rol, e esse rol está lá na minha dissertação de mestrado, com o nome dos agentes policiais e das pessoas em geral que participaram do mecanismo de violência: são 377 nomes, que estão nessa lista, e apesar da tenente Neuza em diversos momentos ser citada nas falas na Comissão Nacional da Verdade, ela não está nesse rol. Então, novamente esse abafamento dessa mulher, né?

Na sua dissertação você cita uma fala do tenente-coronel Hélio Ibiapina Lima. Ele diz: “Invoquemos a nossa consciência de patriotas, a nossa inteligência e, mais do que tudo e sobretudo, a nossa masculinidade”. É um pensamento, claro, machista que demonstra que, para pessoas como ele, o homem foi feito para comandar; a mulher para obedecer.

A mulher tem um rótulo muito agressivo, principalmente quando a gente fala de alguns mecanismos de violência muito exacerbado; ou quando a gente tem um período ditatorial; quando a gente tem algum período de segregação; ou quando a gente tem a questão da Segunda Guerra, por exemplo, da própria Primeira Guerra; quando a gente tem algum momento expressivo e violento, a questão do rótulo da mulher fica ainda mais exacerbada. E aqui na ditadura civil-militar brasileira a gente tem essa violência de gênero de uma forma muito agressiva, tanto com as vítimas quanto com as agentes policiais. Quando a gente fala de polícia, por si só, independente da ditadura, é um local onde a gente tem um discurso muito fechado. As agentes policiais adentram na polícia principalmente para cuidar. A tenente Neuza, por exemplo, quando ela entra na polícia, ela inicia dentro da estação de trem, cuidando de crianças, mulheres e de idosos. E na ditadura, quando essas mulheres passam por um período de estágio, participam de algumas atividades do DOI-CODI ou do DOPS, novamente, era sempre numa perspectiva de rótulo. Então assim, “tu vais pra esse estágio porque a gente precisa de uma ajuda, pra que tu participes como casal de um outro agente policial ou como irmã, como mãe, mas como a acompanhante”. Então essa mulher vai como acompanhante desse agente policial masculino para dentro de algum local que precisava ser investigado ou uma pessoa. A Neuza vai para dentro de uma igreja, com um dos agentes policiais; depois ela entra na equipe de investigação para ver uma pessoa em específico, mas sempre nessa perspectiva de acompanhante para que a imagem desse agente policial seja menos agressiva. Bom, “tem uma mulher, então a gente pode confiar, né?”

A primeira participação da tenente Neuza, exímia atiradora, foi juntamente com um outro policial, o “Melancia”, na Operação Cúria, com o objetivo de espionar um padre que fazia sermões contra a ditadura. Depois dessa ação a tenente afirmou que “aí eu fui para o ‘açougue’ (a Casa da Vovó) e aí passaram a acreditar que a mulher também tinha capacidade”.

Eu sempre digo que eu gostaria muito de ter conversado com a Neuza para escutar a voz dela, efetivamente. Porque os poucos áudios que eu consegui, eu encontrei na internet, quando tu escutas a voz dela, tu consegues entender a magnitude que ela tinha. Ela é uma mulher com uma fala muito agressiva. Ela não titubeia em nenhum momento para dizer o que ela pensa e o que ela acredita. Então eu creio que essa tenha sido uma parte muito importante da personalidade

dela e eu imagino que ela tenha sido uma mulher muito imponente. Então eu acredito que nessa primeira experiência dela (Operação Cúria), e ela conhece o Melancia e o Alemão, que são os dois agentes policiais da mesma equipe de investigação do DOI-CODI de São Paulo, eu acho que por toda imponência e agressividade dela, ela acaba fazendo da equipe de investigação; então ela participava de sequestros e de muitas ações de extermínio de pessoas e de tiroteios e a partir daí a Neuza passa a ser conhecida por ser uma exímia atiradora. Ela não tinha medo das ações nas ruas.

Ela entrou para a equipe do DOI-CODI em 1970, tinha em torno de 34 anos. Ela dizia que “alguém tem que fazer o serviço, né?” Mas a tenente Neuza também dizia que não gostava de participar dos interrogatórios de vítimas na Casa da Vovó, centro de torturas, na capital paulista.

A Casa da Vovó era uma das nomenclaturas dessa prisão clandestina que ficava na rua Tutóia, 921, no bairro Vila Mariana. Existiam vários codinomes, a Neuza utilizava sempre Casa da Vovó e Açougue, mas também tinha o Hotel Tutóia, o Inferno, Casa dos Horrores e Hospital. Então nesse local teve uma ampla disseminação de violência, de torturas e sevícias; e a Neuza participava desse mecanismo de violência, apesar de ela na entrevista com o Marcelo Godoy (jornalista e escritor do livro “Casa da Vovó”), a gente tem essa fala que ela diz que “olha, eu assim da tortura em si eu não participava, né?” Eu não consegui mapear nenhum momento em que ela tenha praticado efetivamente torturas. Eu não encontrei. Mas o conceito de violência é muito amplo. Ela não participava da tortura, mas até que ponto ela não participava da tortura? Porque a tortura ela vai muito além da ação física. A Neuza, apesar de não praticar o ato de tortura, ela estava inserida no mecanismo de violência de uma forma ativa e agressiva. E dentro da Casa da Vovó ela caminhava naquele espaço. Há relatos de pessoas que a viram caminhando “ah, eu vi uma mulher caminhando lá.”

Ela tinha uma mecha branca no cabelo, uma característica dela.

Ela era uma mulher muito magra, alta, 1,70 m, que é uma estatura alta para as mulheres brasileiras; e ela tinha essa mecha característica no cabelo que não a deixava passar despercebida.

 

Quantas pessoas ela sequestrou e matou?

Ela sequestrou em torno de dez pessoas e ela participou da morte de três pessoas, efetivamente, além das que ela não denomina. As três pessoas mortas eram integrantes da Ação Libertadora Nacional. O Arnaldo Cardoso Rocha, o comandante na época da ALN; o Francisco Emmanuel Penteado e o Francisco Seiko Okama, em15 de março de 73. A tenente acaba recebendo a Medalha do Pacificador exatamente por esse ato, que é o extermínio.

Um dos casos mais emblemáticos dela foi o sequestro da família Teles.

Com certeza. Em 29 de dezembro de 1972, tem o sequestro da família Teles: Amelinha e o César (César Augusto Teles), marido dela. Depois sequestraram a Criméia, irmã da Amelinha e a Janaína, de 5 anos, e o Edson, de 4 anos, filhos da Amelinha. A Neuza foi responsável pelo sequestro da Criméia e das crianças. Ela vai até a casa da Amelinha e pega a Criméia, grávida de 8 meses, e as duas crianças e os leva para a Casa da Vovó. Nos relatos da Amelinha na Comissão Nacional da Verdade, onde ela traz essa informação que tinha uma mulher que sequestrou seus filhos e que ficou corresponsável pelos seus filhos; o que é algo muito “engraçado”, porque essa extremamente imponente, que recebe a medalha do pacificador, que quando falava no rádio das viaturas, os agentes policiais paravam para escutar o discurso dela, mas naquele momento em que a gente tem duas crianças indo para a prisão clandestina, o cuidado cabe a ela.

Em uma fala da Janaína, ela lembra que a tenente Neuza não foi nada maternal.

Ela ficou responsável por levar o Edson e a Janaína para a sala de tortura para que os pais vissem que as crianças estavam num ambiente de cárcere e eles eram usados para torturar psicologicamente a Amelinha e o César. Nós temos o relato tanto do Edson quanto da Janaína que os pais estavam numa situação deplorável, uma condição muito triste, a Amelinha na cadeira do dragão, muito machucada, defecando e urinando em decorrência da tortura. E aí a Neuza leva essas crianças para que vejam os pais. Então, eu volto a te dizer do conceito da violência: “O que é violência, né?” E a gente não pode fazer um comparativo: Ah, ela não torturava”. Eu acho muito complexo a gente dizer que a Neusa não torturava, porque violência psicológica é um tipo de tortura e às vezes é um tipo de tortura muito mais agressivo do que um tapa, um chute, um soco no olho, principalmente para uma mulher mãe vendo os filhos num ambiente extremamente agressivo, sem ter nenhum tipo de informação e não saber o que está acontecendo e imaginar que a irmã também estava já sequestrada, porque se filhos estavam com a irmã e agora estão aqui, a irmã também estava sequestrada. Até que ponto essa mulher também não participou da tortura?

A tenente Neuza não era a única mulher envolvida nesse mecanismo de violência?

Num levantamento que a gente conseguiu fazer, principalmente a partir do livro do Marcelo Godoy, porque daí a gente tem a fala da Neuza e de outros agentes policiais que participaram e que trazem essa informação, foram em torno de cinco mulheres, que eram as tenentes Neuza, Wilma (Vilma), Regina, Magali e a Dyarsi. A Wilma e a Dyarsi participaram da equipe de investigação do DOI-CODI de São Paulo. A tenente Wilma foi tão participativa quanto a Neuza; ela participou de

diversos sequestros, casos de mortes. Sobre a Dyarsi, o pouco de informação que a gente tem, é que ela não foi tão ativa. E não temos muitas informações sobre as tenentes Regina e Magali. A Neuza se destaca mais porque temos mais informações, tem os relatos da Amelinha Teles, que é uma grande figura, quando a gente fala sobre violência de gênero na ditadura civil-militar brasileira, contabiliza muito para a gente conseguir entender quem era essa mulher, porque a Amelinha Teles quanto faz algum relato, ela normalmente ela fala da Neuza: “Uma mulher que sequestrou os meus filhos, que levava eles para dentro da tortura”. Eu acho que a grande problemática dessas agentes policiais é a questão da visibilidade, é muito difícil fazer um mapeamento, é como achar uma agulha no palheiro porque a gente não tem informação, então para onde tu vais?

Há um contraponto à tenente Neuza que é a escrivã Faustina Elenira Severino, do DOPS de Porto Alegre, uma mulher negra e ex-religiosa. Ela foi decisiva no caso do sequestro dos uruguaios durante a Operação Condor, uma operação onde ditaduras da América do Sul tinham uma aliança de troca de informações, com apoio dos Estados Unidos. No dia 12 de novembro de 1978, os uruguaios Lilián Celiberti, seus dois filhos, Camilo, 8 anos e Francesca, de 3 anos, além do companheiro de partido da Lilián, Universindo Diaz, foram presos na capital gaúcha. A Faustina ajudou a salvar as duas crianças.

A gente tem esse contraponto de duas mulheres que eram agentes policiais, cada uma no seu local de fala, e a Faustina acaba adentrando no mecanismo de violência totalmente cega, que é uma coisa que não acontece com a Neuza. A Neuza além de ela ter muito discernimento do local onde ela estava, mesmo depois quando ela foi entrevistada pelo Marcelo Godoy, ou seja, anos depois da ditadura civil-militar brasileira, ela seguia com o mesmo discurso de que “ah, o presunto... porque tem que matar mesmo porque, agora eu já estou velhinha, mas ainda dá para matar”. Então, se ela precisasse naquele momento de vida dela, anos depois da ditadura, se ela tivesse que matar alguém, ela mataria. Nós podemos ver esse contraponto de discurso da Neuza, em um local onde ela sabia o que acontecia e ela se sentia pertencente ao mecanismo de violência, versus a Faustina, que é uma mulher que acabou entrando nesse mecanismo de violência sem entender muito bem onde ela estava. As crianças, filho e filha da Celiberti, vão para dentro dessa prisão clandestina e ficam com a Faustina que, ao contrário da Neuza, não participava ativamente da violência policial; a atividade dela era administrativa dentro da polícia e ela ficou com essas crianças e efetivamente cuidou delas, inclusive foi uma relação terna. A Faustina percebeu que algo errado estava acontecendo e ela entrou em contato (anonimamente) com o advogado da família Celiberti, para tentar de alguma forma salvar o Camilo e a Francesca, dizer que a mãe deles havia sido sequestrada. A Faustina dentro desse período histórico extremamente repressivo, eu acredito que mesmo ela sabendo de todo

ônus dessa ação, mesmo assim ela opta por fazer isso, claro que de uma forma anônima, mas ela procura auxiliar para que essas crianças fossem assistidas.

 

Em 1979, a Faustina é convocada a prestar depoimento à CPI do sequestro dos uruguaios; cinco dias depois ela morreu. Você acha que foi uma queima de arquivo?

Com certeza foi queima de arquivo. Não fazia sentido aquela morte, ela era uma pessoa saudável. E novamente a imagem desse mecanismo de violência, uma mulher que trabalhava como escrivã fica incumbida de auxiliar as crianças e ninguém (da polícia) nunca imaginaria que ela iria delatar o sequestro do Camilo e da Francesca. Quem iria imaginar? Nos relatos que a Faustina fez, ela não tinha muito noção do que que estava acontecendo, claro, sabia do contexto da ditadura do país, mas ela não tinha noção do que estava acontecendo no local de trabalho dela.

Quando a Lilián Celiberti é levada ao DOPS juntamente com os filhos e é separada deles, nesse momento ela fica numa sala com a Faustina e se arrisca ao pedir que a escrivã ajude seus filhos, que avise sua família, seus pais, em Montevidéu. Você acredita que nesse momento a Faustina se deu conta do que estava acontecendo, do perigo que a família corria?

Eu acho que aquele momento foi um divisor de águas, que ela se dá conta do que se passava no local de trabalho dela. Ela não fica em nenhum momento insensível em relação a isso; primeiro tem toda questão dos cuidados com as crianças; segundo a assistência com essa mãe, escutá-la e dar voz para ela em todo momento que ela pode e depois, claro, dentro do contexto dela, procurar os meios para que isso (o pedido da Lilián para salvar as crianças) seja feito.

Lívia, qual leitura que você faz da participação da mulher nessa engrenagem extremamente machista que é a engrenagem policial, militar?

Quando a gente fala sobre algum período repressivo, como a ditadura, as violações e as violências são muito mais agressivas; e os rótulos, os estereótipos são ainda mais perpetuados durante esse momento. Então, a questão do gênero aflora bastante, seja quando se trata de uma mulher militante política ou de mulheres agentes policiais que aturaram como operárias da violência nesse mecanismo. Em relação às militantes políticas temos a questão de gênero muito latente sob a perspectiva da tortura, porque a tortura contra o corpo feminino foi uma tortura extremamente agressiva, principalmente na perspectiva da violência sexual. Então, a mulher sexualizada e já que ela está lutando contra o sistema, então é uma é vagabunda, é uma prostituta; tem também a violação das mulheres grávidas, o corpo dessas mulheres, “os filhos dessas comunistas, não queremos mais um comunista”. E as mulheres militantes políticas, ao analisar o discurso

delas, que mesmo as que participavam ativamente como militantes, que pegavam em armas, mulheres que participaram da Guerrilha do Araguaia de uma forma extremamente ativa, mesmo assim elas eram invisibilizadas no sentido de que, às vezes, os postos de comando dentro da militância não eram dados a elas, mesmo elas atuando de uma forma parelha com o gênero masculino. Então, é importante que a gente tenha a noção que essa questão do gênero é uma violência estrutural, caminha com a gente até hoje, por isso não seria no movimento militante que ele aconteceria de uma forma diferenciada. Então a gente tem esse machismo dentro da militância política; temos a utilização das militantes de esquerda nas prisões clandestinas, a violência sexual como forma de poder gênero masculino versus essas mulheres em cárcere.

E quanto à questão do gênero na engrenagem da repressão?

Sobre as agentes policiais na ditadura, é interessante que a gente entenda que novamente estamos nesse período histórico repressivo, marcado por rótulos e estereótipos muito latentes. Quando a gente fala sobre as agentes policiais, para mim é ainda muito mais complexo. Nós temos essa questão muito delimitada do “local” das mulheres. Por exemplo, como disse antes, a tenente Neuza começa trabalhando na polícia como agente numa estação de trem prestando assistência aos mais vulneráveis. A mulher precisa cuidar; a mulher precisa zelar; a mulher precisa atender. Num segundo momento elas são usadas em alguma operação como acompanhante de um homem e desta forma passar uma imagem mais simpática, mais empática, e assim ninguém desconfiaria. Só que aí a gente tem a Neuza que é uma mulher que se destaca e foge à regra e participa tranquilamente desse mecanismo da violência. É importante entender que quando a gente fala em ditadura civil-militar brasileira, nada é isso ou aquilo. A gente precisa entender essas nuances, nuances da sociedade como um todo. Temos mulheres criminosas na sociedade hoje, por que não teríamos naquela época? Temos mulheres com pensamentos extremamente conservadores e machistas hoje, porque não teríamos naquela época? É fundamental entender as nuances dessas mulheres quando a gente fala sobre gênero feminino na ditadura civil-militar brasileira. A gente não tem esse “costume” de ver uma mulher, uma agente policial, participando ativamente do mecanismo de violência. Isso choca, né? Vamos voltar à tenente Neuza: ela sequestra uma mulher grávida e duas crianças. A Neuza rompe completamente com esse rótulo machista de “ah, a mulher detentora do cuidado, empática, cuidadora...” Ela rompe completamente com esses estereótipos. As pessoas se chocam muito, sempre, toda vez que eu falo sobre a Neuza, e o meu objetivo ao pesquisar esse tema é justamente tirar as pessoas desta zona de conforto, abrir o leque. Cada vez que falamos do período da ditadura e de mulheres, automaticamente o pensamento vai para aquela mulher militante política; é óbvio que elas são extremamente importantes,

emblemáticas, passaram por violências inimagináveis e precisamos falar a respeito, sobretudo por esse momento conservador que estamos vivendo novamente. A gente precisa falar sobre isso. A gente precisa falar sobre ditadura. Mas não foram só as mulheres militantes políticas que atuaram na ditadura; nós temos também as agentes policiais que são mulheres que também participaram, e participaram ativamente das engrenagens de violência e que geralmente não são trazidas à luz.

 

Por causa da sua dissertação de mestrado sobre As Mulheres como Operárias da Violência, na ditadura civil-militar brasileira, você enfrentou algum problema?

Tem um estereótipo em relação a mim. Quando eu vou falar sobre mulheres operárias da violência, quando eu vou falar sobre agente policial, quando eu vou falar sobre mulheres conservadoras que apoiaram o golpe, as pessoas sempre me confundem e acham que eu apoio isso, né? Que eu sou uma apoiadora da ditadura; que eu sou uma apoiadora desse pensamento, é completamente o oposto. Só que eu acho que eu tenho essa responsabilidade como pesquisadora, ativa na luta pelos direitos humanos, dessa violência de gênero; eu tenho essa responsabilidade também de pesquisar sobre essas mulheres e trazer isso à tona, juntamente com as mulheres militantes. Falar sobre a questão da perspectiva de gênero na ditadura civil-militar, de todas essas mulheres, principalmente para dar voz, por exemplo, para a Amelinha Teles que é uma mulher que foi violentada psicologicamente pela Neuza. E por que que ninguém fala da Neuza? É muito incômodo, né?

''Enquanto eu não matasse todos, eu não ia ter sossego'': As mulheres como operárias da violência no contexto da ditadura civil-militar brasileira (1964-1985) - Dissertação de mestrado

as vozes da resistencia branco.png
  • Spotify
  • Deezer

© 2024 por AS VOZES DA RESISTÊNCIA - todos direitos reservados. 

bottom of page