

''A MULHER É O OUTRO. A MULHER NÃO É O SER HUMANO UNIVERSAL. O MODELO UNIVERSAL DE SER HUMANO, HISTORICAMENTE, SEMPRE FOI O HOMEM''
MARIA CECÍLIA DE OLIVEIRA ADÃO
A historiadora Maria Cecília de Oliveira Adão, nos últimos 10 anos, trabalha com o tema de Memória, Verdade e Justiça. Ela foi pesquisadora na Comissão Nacional da Verdade e trabalhou como coordenadora do grupo ligado à Guerrilha do Araguaia. De 2016 a 2018, ela foi consultora na Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e, atualmente, é conselheira nessa mesma comissão que teve os trabalhos retomados em 2024 depois de ter sido suspenso no governo de Jair Bolsonaro. Maria Cecília se formou em História Social e História Política na Unesp, em Franca, onde fez a graduação, mestrado e doutorado. Desde a graduação, o foco de estudo tem sido a participação feminina nos processos de resistência à ditadura militar. Nesses anos tenebrosos, homens e mulheres lutaram contra a supressão dos direitos civis; foram sequestrados, torturados, presos, mortos e, dezenas de militantes estão desaparecidos. Pesquisadores, como Maria Cecília de Oliveira Adão, cumprem um importante papel: fazer justiça às mulheres relegadas a papéis de coadjuvantes, à margem do protagonismo dado aos homens militantes durante os anos de chumbo do Brasil. A historiadora, em 2002, concluiu sua dissertação de mestrado a “Militância Feminina: Contradições e Particularidades (1964 – 1974)”. É sobre esse assunto a entrevista dada ao Portal As Vozes da Resistência.
Cecília, eu começo nossa entrevista com a citação “A história das mulheres é uma história de esquecimento” dos historiadores Michele Perrot e Georges Duby, na obra A História das Mulheres. E cito uma passagem da introdução da sua dissertação “Militância Feminina: Contradições e Particularidades (1964 – 1974)”, de 2002: “Que em todas as esferas do conhecimento os estudos apresentados muitas vezes não evidenciam a presença feminina no fazer histórico. Embora as mulheres sempre têm adotado uma postura ativa de envolvimento nesses processos. Qual é então o motivo deste ocultamento?” Qual seria, Cecília, na sua análise, o motivo?
A mulher é o outro. A mulher não é o ser humano universal. O modelo universal de ser humano, historicamente, sempre foi o homem, né? Então, a atuação que é considerada padrão, desde sempre, é atuação masculina. Então a atuação feminina, ela é historicamente vista como uma atuação acessório. Se a gente for trazer para a cultura popular, para o senso comum, atrás de um grande homem, atrás, tem uma grande mulher. Ela não está à frente, ao lado. Então é por isso que a atuação feminina ela é alvo de esquecimento, porque toda ação feminina é tida como uma ação acessória, ela não é tida como uma protagonista ou alguém que lidera. Então as mulheres elas ficam sempre à margem. E é importante a gente também entender que a história durante muito tempo, se a gente pensar nos registros históricos, quem narrou a história? Quem contou a história? Isso também foi feito por homens. Os homens falaram sobre as mulheres. Essa maneira de registrar a história também colocou as mulheres nesse campo do secundário, da atuação secundária. Por exemplo, a história que antes era tradicionalmente vista como a história dos grandes fatos, a história da guerra, na guerra quem lidera são os homens, são os generais, são os governantes. Então a mulher não aparece na história da guerra como uma soldada, embora ela sempre estivesse nas fileiras. Embora sempre tivesse havido grupos femininos que lutaram. E aí a mulher vai aparecer onde? Ela vai aparecer nos grupos que atendem aos papéis sociais femininos tradicionais. Na guerra ela aparece como enfermeira, não como uma combatente; mais uma vez um papel acessório. E para uma guerra as enfermeiras são essenciais? Não, essenciais são os heróis, os soldados conquistadores. A história das mulheres, por isso, é fadada a esse esquecimento. A mulher é alguém que entra como acessório; alguém que teve uma atuação secundária. Isso é muito marcado dentro do patriarcalismo. É um domínio masculino sendo preservado por homens, e todos os esforços são feitos para que esse domínio permaneça. Nunca foi conveniente que as mulheres tivessem protagonismo, mesmo quando elas tiveram.
Por que “negar” esse protagonismo à mulher?
Porque senão a gente já teria dominado o mundo (gargalhada).
E essa é uma tendência não só da sociedade ocidental.
Isso é mundial e é histórico. Sempre foi assim, né? Parece muito absoluto dizer “sempre, nunca”, mas durante todo o registro histórico que a gente tem, a gente tem esse registro das mulheres como seres à parte, como seres secundários, como menos importantes. No século XVIII ou XIX se olhava, por exemplo, para as grandes descobertas e para as pesquisas arqueológicas, a leitura que se fazia dos artefatos arqueológicos era uma leitura com esse olhar patriarcal. Mesmo que fossem descobertos artefatos femininos e demonstrava algum fazer histórico feminino, isso era interpretado sempre nesse viés de uma atuação secundária ou pelo menos uma atuação menos importante. Por exemplo, só os homens; historicamente isso foi tratado assim ou foi traduzido assim; só os homens iam para a caça, uma atividade viril, é uma atividade de ação que exige força, agilidade; e as mulheres ficavam semeando, que é uma atividade passiva, tranquila. Os homens são dotados de força e as mulheres de paciência. Eles são quase que invulneráveis porque corriam atrás de grandes presas, de grandes predadores, e as mulheres ficavam ali protegidas. Essa atuação ela foi demonstrada assim, historicamente. É esse olhar que foi lançado para essas descobertas. Então a gente sabe que existiam sociedades matriarcais, a gente sabe que existiam sociedades onde esse traço matriarcal estava ligado a ausência de propriedade, por exemplo. Mas o registro, a valorização desse tipo de história não é interessante porque mostra uma alternativa. Hoje, todos os problemas que a gente está vivendo em 2025, problemas climáticos..., o fim do mundo, para resumir, e o fim do mundo o que é que é? É uma tremenda falta de alternativa. Então, se essas coisas tivessem sido registradas a gente teria percebido que tínhamos alternativa antes das coisas chegarem a esse ponto. Por isso que não é interessante, é uma outra história. A história das mulheres é uma outra história. É a história dos vencidos, a história dos que não tiveram voz, a história subterrânea.
Você acredita que isso passa muito pelas religiões?
Passa também. Eu acho que todo esse discurso não consegue ser montado a partir de uma única verdade; então tem uma verdade religiosa, tem uma verdade jurídica, tem uma verdade médica. Ana Maria Colling, historiadora, fala muito bem disso. Então existem diferentes discursos que são maneiras de enxergar o mundo, de interpretar as coisas que vão construindo esse lugar das mulheres no mundo. Os discursos estão sempre ligados ao saber; pode ser um saber religioso, um saber jurídico, um saber filosófico, um saber médico; esses saberes vão se juntando e vão construindo essa “verdade” única.
Cecília, o gênero, por exemplo, sob a perspectiva da filósofa norte-americana, Judith Butler, é socialmente construído. Eu gostaria que você analisasse essa questão.
Ela diz que o gênero ele é socialmente construído porque existem os papéis sociais de gênero. Qual é o papel social de gênero? São os papéis que as mulheres vão desempenhar ou vão performar a partir da perspectiva de que ela é uma mulher, ela nasceu com uma genitália feminina, então, se ela nasceu com uma genitália feminina ela vai performar determinados comportamentos e os homens vão performar outros comportamentos. Isso é a identidade de gênero. Quem acaba construindo isso é a sociedade. Por isso que ela diz que são conceitos socialmente construídos. Porque, por exemplo, para as mulheres, quais são os papéis femininos? A mulher vai precisar cozinhar, ela vai cuidar, vai ser cuidadora ela vai ser paciente, vai ser amorosa, ela vai ser gentil, ela vai ser delicada, né? Então ela vai ficar nesse lugar de proteção. Ela vai ser do lar, enquanto o homem vai ser do espaço público. Ele vai ser o forte, o viril, o provedor. Mesmo que isso hoje tenha mais nuances do que já teve no passado, continua mais ou menos do mesmo jeito. Quando vai fazer o chá revelação, quando a criança ainda nem nasceu, se é menino sai fumaça azul; se é menina sai fumaça rosa. Portanto a sociedade já diz que é assim. Só que a menina não nasce gostando de rosa, nem de azul, nem de amarelo e nem de nada. Ela vai ser ensinada que a cor dela é rosa e o menino vai ser ensinado que a cor dele é azul e que a partir do momento que ele é designado na cor azul ele vai ter liberdade para subir na árvore, ele não vai precisar se sentar com as perninhas fechadas e ele vai ter diversas liberdades. A menina não vai ter essas mesmas liberdades; isso é socialmente construído. Então, as noções de gênero são socialmente construídas, elas não são naturais, elas não são inatas, a gente não nasce com elas. A sociedade constrói isso, né? E isso foi sendo construído ao longo da história humana. A Judith Butler diz que o gênero não é algo natural, ele é algo que a sociedade constrói e esses papéis de gênero eles vão sendo construídos. Eles também podem ser alterados de acordo com as necessidades históricas. Então, por exemplo, as mulheres não trabalhavam fora até o início do século XX. Mas aí, com o período de guerras, com a necessidade de deslocar os homens para outros espaços, por exemplo para a guerra, para o front, as mulheres assumem o espaço da fábrica, assumem o espaço do trabalho. Antes a mulher era do lar, agora ela é do trabalho. Esses papéis de gêneros podem ser alterados e podem ser deslocados de acordo com as necessidades do momento. Mas isso é sempre um movimento social. Se a gente tem uma sociedade mais conservadora agora, a tendência é valorizar aspectos mais conservadores. Aí a gente vê aí esse monte de perfil de esposas ideais, a mulher que levanta às quatro horas e bate a manteiga e faz o pão. Essa loucura toda.
Na sua dissertação Militância Feminina de 64 a 74, você justamente pela escassez de registros escritos sobre a mulher, você recorre à oralidade, o registro oral de quatro ex-presas políticas.
A possibilidade do uso da história oral, eu acredito que ela é fantástica porque ela é um recurso muito importante justamente quando não há registros. Como falamos no início, a história das mulheres é tida como uma história menos importante, ela não ficou registrada. Então, como é que as mulheres participavam na luta armada no período pós 64? Ou na resistência? Algumas não pegaram em armas. Como é que as mulheres participaram? A gente não sabia por que esse registro não havia. Por isso a história oral surge como uma possibilidade de construir essa documentação histórica. Primeiro de tudo, ela é um método. A gente vai, a gente constrói um documento em colaboração com a pessoa que está sendo entrevistada, dessa forma, a construção do documento histórico é uma colaboração, muitos autores chamam essa pessoa de colaborador. Desse modo, cria-se uma rede de colaboradores, uma pessoa acaba indicando outras pessoas que podem dar seus testemunhos e vai construindo-se uma rede e a partir desse trabalho, entre entrevista, conferência, o documento vai sendo construído e ao final do processo a gente tem um documento histórico. Mas ele é um documento histórico muito importante, justamente porque ele vai preencher lacunas. A história que não foi registrada, a história que não foi contada ou a história que só está lá no grupo como memória, a memória vira história a partir dessa construção, a partir desse momento em que a gente consegue registrar essa memória, passar
pelo crivo do historiador, pelo trabalho historiográfico, e aí então a gente tem uma história que vai preenchendo essas lacunas, que vai nos dizendo sobre coisas que não estavam registradas, que não sabíamos. A oralidade é um recurso muito interessante, muito importante, porque é isso, né, é a memória dos que não tiveram voz; dá voz a quem não teve voz; ela é excepcional como recurso metodológico.
Você ouviu quatro mulheres que foram presas e torturadas na ditadura militar?
Eu entrevistei a Criméia de Almeida, a Amelinha Teles (duas irmãs), que são militantes bastante conhecidas; a Áurea Moretti, que era de Ribeirão, das FALN – Forças Armadas de Libertação Nacional; a Guiomar Silva Lopes, militante da ALN – Ação Libertadora Nacional. A primeira delas que eu conheci foi a Áurea, o meu TCC foi escrito com base numa entrevista que eu fiz com ela ainda na graduação; depois num evento científico, por acaso, eu conheci a filha da dona Guiomar, que me apresentou a ela e aí depois fui falar com a Amelinha e com a Criméia que são bastante representativas, são conhecidas. E eu sempre penso nelas, assim como mulheres muito especiais, porque elas são extremamente corajosas, extremamente generosas; elas se dispuseram a pegar a vida delas e usar em prol do bem comum. Elas são para mim mulheres muito incríveis.
Cecília, você fez essas entrevistas anos atrás, foi difícil para elas relatarem suas prisões, as torturas pelas quais passaram?
Esse meu trabalho é de 2002, são 23 anos. Mas 20 anos atrás, a Amelinha e a Criméia já tinham uma representatividade no grupo, eram reconhecidas pela sua militância. Amelinha e Criméia são filhas de militantes, elas sempre estiveram na militância. E mesmo com a prisão, elas não deixaram de militar. Para ela e para a Criméia eu sinto que era algo mais natural tratar desse assunto. Não era como se fosse uma novidade. A Áurea também já tinha dado diversas entrevistas, ela tinha uma história consolidada, conseguia falar. A dona Guiomar, talvez menos, um grau menor de frequência. Dentro das organizações de esquerda, claro, tinha homens e mulheres; o que as mulheres faziam? Então, quando a gente destaca as mulheres do restante nós conferimos uma importância para essa atividade. E quando a gente começa a perguntar os detalhes, começa a trazer luz sobre vários aspectos da atuação das mulheres. E eu acho que o que muda é que sempre a gente vai jogar luz a partir do que estamos vendo naquele momento. Então, se hoje eu fosse fazer questões para elas, provavelmente faria de maneiras diferentes. Por exemplo, falar sobre violência sexual, algumas coisas naquele momento, quando eu fiz essas entrevistas, não eram entendidas como violência sexual. E se a gente perguntasse hoje, elas com certeza diriam que foi violência sexual. Hoje já não há mais dúvida sobre isso. Questões que antes eram minimizadas, talvez hoje estejam mais claras ou mais evidentes, portanto, dotadas de maior importância.
Os anos 50, 60, principalmente, são anos de grandes mudanças na sociedade, nos comportamentos. Na luta política, o fato de as mulheres atuarem em organizações de esquerda não significava estarem livres do machismo?
Elas são mulheres brancas e universitárias, a maior parte delas entra nesse recorte, então isso para aquele momento já era uma novidade. A partir da década de 30, as mulheres começam a entrar nas universidades; mas até a década de 60 essas mulheres entravam para se “ilustrar”, era para ser uma esposa “ilustrada”. Ela entrou na faculdade, ela estudou, mas ela não trabalhava. Era aquela mulher que sabia falar outras línguas, ela tocava piano, era uma esposa super qualificada. Era isso! A novidade é que a partir da década de 60 é que essas mulheres pretendem trabalhar, elas vão ser professoras universitárias, elas vão compor um corpo profissional mais especializado. E isso para as mais jovens, estar na universidade, conviver no ambiente universitário, participar do movimento estudantil, possibilitou para essas mulheres que almejassem esse espaço político, de discussão política. Então, isso é almejar o espaço público. E essas mulheres abraçaram a partir desse momento a ideia de que elas podiam sair do espaço privado, deixar de lado essa ideia de ser esposa “ilustrada” e ir para o campo profissional e para atuação política. Essa é a mudança. Só que aí, obviamente, os papéis sociais, de gênero, eles não mudaram tanto assim. Embora houvesse essa abertura, essas mulheres quando vão para as organizações elas entram sempre no quadro de apoio, vão ser da logística, vão organizar as comunicações internas, vão fazer trabalhos de expropriação mais “delicados”, roubar placas de carro, ou seja, elas vão fazer essas ações que dão sustentação para as grandes ações. Então elas estão sempre nesse trabalho de organização interna, que é meio que uma extensão do papel da mulher. O papel da mulher é cuidar e organizar, então nas organizações também farão isso.
Fica evidente o machismo dos homens dessas organizações que lutam contra a ditadura em detalhes, como você apontou em sua dissertação, como a “nova” forma de se vestir das mulheres. Você até cita uma passagem que a Amelinha Teles conta que um dos companheiros de organização criticou o uso de minissaia, uma roupa considerada inadequada por ele.
Isso, a Amelinha disse que usar minissaia era considerado um vício burguês ou que não devia porque ia chamar a atenção para as militantes e colocar o partido em risco. Coisas nesse sentido de que a mulher, a partir da minissaia, chamaria atenção demais e colocaria a segurança de todo mundo em risco. Era uma maneira de mantê-las nesses papéis tradicionais. E uma coisa que é interessante é que não eram só nas práticas, né? As questões que elas levavam, por exemplo, o feminismo, que só foi assumido e passou a ser uma prática lá no início da década de 70, ele era visto como uma questão divisionista. O que se devia fazer era abolir a ditadura. Discutir o feminismo era entendido como uma questão que ia atrapalhar o processo. Então a questão era a luta de classes e não as questões femininas específicas, não era possibilitado para elas levar essas discussões. Embora elas tivessem voz e pudessem falar sobre as questões, elas quase nunca chegavam à liderança dos grupos porque elas não eram vistas como suficientemente capazes para exercer esse papel de liderança. Então elas sempre ficavam nesses lugares mais coadjuvantes mesmo. A Criméia fala que no Araguaia foi sugerido, não foi dito claramente, que ela lavasse a roupa de uma liderança, de um homem mais velho, e ela retrucou “como assim, a gente está aqui para lavar roupa? Como assim?”
No fim dos anos 60 e começo dos anos 70, quando a Criméia estava no Araguaia, ela narrou que antes de ter seus direitos respeitados pelos companheiros de militância ela tinha que fazer o papel de “homem”, o trabalho pesado, como derrubar árvore, porque se não sobrava os serviços de “mulher”.
É interessante isso porque é a primeira vez as mulheres ou esse grupo específico está lidando com essa nova possibilidade de divisão. Então isso é muito comum entre essas mulheres da primeira geração assim, dessas mudanças femininas, porque primeiro se exige delas “ah, você não quer fazer o papel de mulher, então você vai ter que fazer o de homem; vai ter que derrubar uma árvore; você vai ter que ter a mesma força que o homem”. Naquele momento você ainda não tinha outras possibilidades conforme a gente tem hoje, né? Então a mulher para ser respeitada ela tinha que se masculinizar, que era um outro problema, era uma outra questão. Havia essa dicotomia. “Se você não quer os papéis femininos, toma aqui um pacote de papel masculino que você vai ter que exercer”. Mas ainda assim não vai dar certo porque ela nunca vai ser reconhecida como uma igual, “tá bem, você derrubou a árvore, então você já pode ser liderança”. É aquilo que eu falei lá no início, o ser humano universal é o masculino, então a igualdade é pautada no masculino também. Então, ser igual é ser um homem. “Se você que ser igual, então me ajuda a derrubar a árvore”.
E uma outra passagem dentro da luta política durante a ditadura foi quando as presas políticas começaram a ser levadas para o Presídio Tiradentes, em São Paulo, e ficaram numa torre que passou a ser chamada pelos companheiros presos nas alas masculinas de “torre das donzelas”. Muitas mulheres não gostaram desse nome porque reforçava um estereótipo.
Esse caráter feminino de ser protegida. É até uma questão meio romantizada desse papel delas; a “torre das donzelas”, como se elas fossem inalcançáveis.
Cecília, entre as quatro ex-presas políticas que você entrevistou, a Guiomar é uma das que se falava muito pouco.
Sim, ela é muito interessante porque ela fazia essas atividades “acessórias”, por exemplo: ela participou de um roubo de perucas num salão de beleza. Ela participava nessa preparação. Mas eu a acho uma das mais corajosas porque ela é presa, é torturada, e ela era estudante de medicina, ela é levada para um hospital. No hospital a Guiomar dá um jeito de se desvencilhar e pula da janela para se matar, para não voltar para a tortura. Era um suicídio “preventivo” para escapar da tortura mesmo e para que não houvesse entrega de outros companheiros. E ela tenta essa saída, só que aí ela fica ainda mais machucada, retorna ao hospital, fica internada muito tempo, vai para a prisão, é torturada e processada. A Guiomar tem toda essa trajetória longa, né, e ela sempre muito abnegada. Eu fui pesquisar e no inquérito a foto dela era muito jovem, muito jovem. E eu sempre pensei “como pessoas tão jovens tinham abnegação e integridade pra passar por tanta coisa?” Eu não teria a mínima condição de passar pelas coisas que elas passaram, e muito jovens, com 20 e poucos anos. Eu acho que são histórias muito impressionantes. E depois a Guiomar se mantém nesse grupo dos militantes, que também eram grupos de amizade, já eram amigos antes e tudo isso fortalece esses laços. Eu me lembro da vez que fui fazer a entrevista com ela, e ela estava casada, na época, com outro militante, o Takao Amano, ela o apresentou para mim e naquele dia eu entendi que eles eram os meus heróis.
Guiomar, Áurea, Criméia, Amelinha. O que havia em comum entre essas mulheres?
Em comum, se a gente for falar sobre prisão, por exemplo, todas elas vão sofrer muita violência, muita violência. A violência da tortura, que é a violência comum a todos que vão ser presos nessas circunstâncias e violência de gênero, incluindo violência sexual. A Áurea e a Amelinha falam isso claramente. E por quê? Porque a violência sexual, se a gente pensar em termos de tortura, não era necessário. A tortura, num primeiro instante é para que a pessoa fale o que sabe, entregue outras pessoas, locais, planos. Então, o primeiro momento é muito violento por conta disso; mas num segundo momento a pessoa já falou, está muito debilitada e no caso das mulheres a isso soma-se a violência sexual. Qual é a função da violência sexual? É mostrar para essa mulher qual era o lugar dela, colocar a mulher no lugar dela, dizer “nós temos poder sobre você, esse poder é demonstrado pela tortura, então é o poder do aparato repressivo, mas nós também temos um poder de gênero, um poder patriarcal sobre você. Nós somos homens, você é uma mulher e a gente vai te mostrar qual o seu lugar, de onde você nunca deveria ter saído”. A mulher é humilhada. A violência, a tortura e a violência sexual que se encontra dentro da violência de gênero é usada como metodologia. Não é aquela coisa dos porões de quatro, cinco que eram pessoas doentias, não, é sistemático, é programado e usado de maneira geral. Então ela se enquadra dentro da violência do Estado. A violência, a tortura e violência de gênero, a violência sexual é violência do Estado. E aí entram as especificidades de cada história. A Criméia estava grávida e eu, depois que tive meu filho, eu consigo imaginar ela estando grávida já no final da gestação, oito meses, o que que é isso para ela, né, porque ela não foi poupada de tortura mesmo estando grávida e o filho dela nasce na prisão. E depois que o filho dela nasceu, os torturadores diziam “agora a gente vai dar seu filho para um outro militar criar e seu filho vai ser da guarda presidencial”. O que eles queriam dizer com isso? Que o filho dela iria se tornar o que ela mais odiava. E ela sofre ameaça de morte. Eles a ameaçavam dizendo que na hora que ela saísse da prisão era para ela tomar cuidado pois podia acontecer algo com ela. Então ainda tem essa permanência, a tortura que permanece por meio das ameaças. A dona Guiomar tem o fato de ter pulado da janela do hospital e ter se machucado; ela demora muito tempo para se recuperar. Até porque ela volta para a cadeia e depois vai terminar o curso de medicina. A Amelinha tem a questão dos filhos que são levados para vê-la na prisão e a princípio, por causa das torturas, do estado lastimável que ela estava, eles sequer a reconhecem. A Áurea, depois que ela sai da cadeia, ela tem que mudar de estado, vai para o Acre para poder trabalhar, porque em Ribeirão Preto ninguém dava trabalho para ela. E sabe-se, por exemplo, de outras mulheres que vão deprimir porque a família não as aceita de “volta”. A família condena a atuação política delas, então tem uma série de questões. O ser mulher incide nesse período posterior. O que é permitido a essa mulher depois?
O que difere a tortura da mulher da do homem? Eles também, por exemplo, sofreram violência sexual?
Essa para mim sempre foi uma questão difícil porque os homens também sofrem essa tortura sexual, mas nem todos nem todos, o primeiro ponto é esse; não são todos os homens. No caso das mulheres não podemos afirmar que foi 100%, mas foi a grande maioria, em diferentes níveis, basicamente todas sofreram alguma forma de violência sexual. Os homens não são todos, né? Eu acho que os homens que passaram por violência sexual, isso acontece numa etapa muito avançada da tortura. Ou sobre aqueles de quem se tinha muito a raiva. Aquele que foi difícil de capturar ou que tinha alguma fama, né, mas isso acontece lá na frente, quase sempre está muito próximo da morte dessa pessoa. Então, eu acho que tem um caráter de gênero porque quando um torturador aplica tortura sexual contra um homem, ele está dizendo que aquele homem não é um homem. Então retiram um nível de “dignidade” desse homem tornando-o mulher; desumaniza também no sentido de “olha, a partir de agora você é um objeto a gente pode fazer com você o que quisermos”. A tortura toda faz isso, mas há esse acréscimo. Eu acredito, como
disse, que não são todos os homens que vão passar por isso, vai depender muito do ódio a essa pessoa, da resistência dessa pessoa. Tem que ser muito “macho” para resistir? “Então a gente vai provar para você que você não é ‘macho’”. Muitos falavam que as mulheres eram mais “machos”, mais resistentes, “nós vamos provar que você (homem) não é tão resistente assim”. Eu acho que tem esses níveis.
Em relação à participação das mulheres na luta armada, até onde a gente conhece, foi pequena. Mas um fato interessante que você revela na sua dissertação é que as mulheres brasileiras que foram a Cuba exigiram fazer parte do treinamento armado, algo incomum até aquele momento.
O pesquisador Marcelo Ridenti, no seu livro O Fantasma da Revolução Brasileira, com base em dados do projeto Brasil: Nunca Mais, só 18% de mulheres optaram pela luta armada. Quando elas vão para Cuba, vão para o exílio, elas exigem isso porque justamente já nessa perspectiva de igualdade, “se nós estamos aqui como exiladas, se a gente vai voltar para o Brasil, se a gente vai continuar, então a gente precisa ter as mesmas condições que os outros. Então nos proporcione essa igualdade”.
Tem alguma mulher que para você se destaca na luta armada?
Tem as guerrilheiras do Araguaia, porque o Araguaia como um foco rural da guerrilha, se pensarmos nas condições de militância eram totalmente diferentes, porque elas se mudam para o Araguaia, sai do universo de estudantes, classe média, vão viver como camponesas, vão trabalhar a terra, algumas vão ajudar em parto. Mas se a gente pensar nessas guerrilheiras especificamente, eu acho que elas têm um protagonismo maior, na minha percepção. Exemplos como a Helenira Resende (Helenira Resende de Souza Nazareth); as “Dinas”, são duas (Dinaelza Santana Coqueiro e Dinalva Oliveira Teixeira), essa última foi a única mulher a ter o cargo de vice-comandante de um dos três destacamentos na guerrilha, que é um caso raro.
Em relação ao racismo, fala-se pouco a respeito das mulheres negras que participaram da resistência à ditadura militar brasileira.
Olha, se não se discutia a questão de gênero, a racial então sequer era mencionada. Primeiro, o fato de ela não ser mencionada não significa que ela não existia, tem que deixar isso bem claro. Poucas lideranças eram negras. O Osvaldão (Osvaldo Orlando da Costa - líder do Destacamento B, no Araguaia) era uma liderança negra bastante famosa, um quadro extremamente preparado. E há também o Francisco Manoel Chaves, qual a história dele? Ele já era um senhor quando ele vai para o Araguaia, ele tem mais de 60 anos. Só que ele era um quadro antigo do PCB – Partido Comunista Brasileiro, depois do PC do B – Partido Comunista do Brasil (uma dissidência do PCB), era um quadro experimentado. Então os dois são “quadros” bem-preparados. O Osvaldão, era um homem negro, grandão, por isso ele chamava atenção, se destacava. E criou-se lendas que ele conseguia se transformar em animal, que ele desaparecia, que ele era encantado. Então isso demonstra a importância dele lá na região. E o Francisco Manoel Chaves, a respeito dele a gente fez um trabalho de compilação de informações da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos sobre o Araguaia e não achamos uma única informação, não tem nada, não tem ninguém lembra dele, ninguém fala ele morreu assim, assado. Sem qualquer organização também.
Bom, se você não tem registros de homens negros, as mulheres negras então...
A Helenira Resende ela se reconhecia naquele momento como uma mulher negra. Ela assina Preta, ela tinha essa consciência. Uma publicação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos aponta 40 pessoas negras (mulheres e homens) desaparecidos durante a ditadura, em todo Brasil. Alguns deles são procurados na Vala de Perus (Cemitério Municipal Dom Bosco, Perus - distrito de São Paulo). A Dinaelza Santana Coqueiro, irmã da Diva Santana; elas (Dinaelza e Helenira) se reconhecem como negras, mas isso não significa que elas vão fazer um trabalho de conscientização racial. Mais uma vez, se a gente não estabelecer discussões, essas discussões não ganham corpo, essas discussões tidas como diversionistas, as que vão dividir, que vão levar a discussão para outro rumo. Qual que era o foco? O combate à ditadura dentro do aspecto da luta de classes. Então, a discussão racial não é uma discussão que é feita. A discussão de gênero já tem mais papel do que a de raça, embora a ditadura em si ela tenha tido todo uma questão de reafirmar o Brasil como um país onde não havia racismo. A ideia da democracia racial foi utilizada pelos governos ditatoriais para “limpar” um pouco a barra do Brasil no exterior. Quando se falava que o Brasil violava direitos humanos, eles falavam “jamais, olha aqui, a gente nem racismo tem. A gente nem apartheid tem. A gente vive aqui uma democracia racial. Branco casa com negro, está todo mundo vivendo bem, a gente tem uma plenitude, a gente não viola direitos humanos”. E estudos que vão classificar as pessoas como negras ou brancas e pensar essa atuação, são recentíssimos. Por que o que acontece? Uma outra coisa interessante: esse tema da negritude e da importância histórica da negritude, embora o movimento negro, por exemplo, existe desde a década de 60, então, esse movimento de resistência nunca deixou de existir. Mas estudos acadêmicos sobre isso só vão surgir nos últimos dez anos, vamos colocar assim. Por quê? Porque coincide com a entrada de pessoas negras nas universidades a partir da criação do sistema de cotas quando entra um número maior de pessoas negras nas universidades, começam a surgir temas sobre pessoas negras. Nós temos 15 anos do sistema de cotas, se você pensar que uma graduação, uma licenciatura, por exemplo como História, vai demorar quatro anos e que essa pessoa vai tratar esses temas no mestrado, no doutorado, vai coincidir com 2014, e é o período da entrega do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, por exemplo. Essa discussão de pessoas negras, em termos historiográficos, é recentíssima. A gente tem uma população de mais de 50% de negros no Brasil; esses mais de 50% não militaram? Não foram perseguidos? A violência contra população negra existiu desde que o Brasil se formou a partir do processo escravocrata, né? Essa população é sistematicamente perseguida desde então. Mas essa perseguição ela sofre uns incrementos de metodologia a partir da ditadura. O desaparecimento? O desaparecimento é uma metodologia “criada” na ditadura; você matar o jovem negro e desaparecer com o corpo é uma metodologia da ditadura que é aplicada hoje; então não tem como dizer não aconteceu nada com esse grupo, que ele passou ileso.
E nessa resistência contra a ditadura, como era a participação das operárias?
Eu fiz uma pesquisa justamente com a Amelinha Teles sobre as operárias, como é que elas foram afetadas pela ditadura. E entra também esse recorte racial nessa pesquisa porque, por exemplo, se tinha uma mão de obra abundante, as mulheres negras eram preteridas. Se eu posso escolher, eu vou escolher as mulheres brancas e os homens também. Então os homens negros, nesse período, eles vão atuar, por exemplo, nas petroquímicas, mas eles vão atuar em lugares perigosos. Eles vão ser os caldeireiros que vão trabalhar lá na boca do forno. E as mulheres negras, por exemplo, vão pegar as funções ou mais perigosas ou mais desvalorizadas. Esse recorte acontece, mas nem sempre ele é claro. Você vai entrevistar a pessoa, nem sempre ela percebe que aquilo que aconteceu com ela era uma violência, uma violência racial dela. Ela era uma pessoa capacitada, mas ela nunca era contratada? E é tão “natural” que às vezes é difícil a pessoa reconhecer que aquilo era uma violência. Só retomando uma coisa que a gente falou aqui, que é importante, acho que um grande movimento qualitativo que se faz hoje dentro das pesquisas, que são discussões políticas e discussões acadêmicas, é justamente considerar essa divisão entre o preso político, vítima de perseguição política e preso ou vítima de perseguição “comum”, porque o controle da população negra também é um controle político. Mas, por exemplo, as vítimas de chacinas que acontecem até hoje, elas não são consideradas vítimas políticas. Até que ponto a gente pode considerar; uma pergunta que eu estou fazendo aqui; as pessoas que estão na Vala de Perus, quantos são desaparecidos políticos e quantos podem dizer que não são desaparecidos políticos?
Mas todo desaparecimento é político?
Exato! Porque as crianças que morreram lá, é uma vala comum, tem corpos de crianças. Estava havendo um surto de meningite que não foi noticiado, portanto, as pessoas não tiveram como se proteger porque não sabiam que estavam correndo risco. As crianças que morrem nesse surto de meningite são vítimas políticas? A gente só pode chamar de desaparecido político ou vítima política aqueles que estavam militando? Então, essa é a discussão.
É uma discussão recente?
Recentíssima, de poucos anos para cá. A CNV terminou em 2014, essa discussão de comparar a violência do passado com a violência do tempo presente como uma continuidade ela é posterior a isso. Essa discussão está aí desde 2016, 2017, 2018.
Como historiadora, pesquisadora, que pergunta você faria sobre essa violência que perdura e se “aprimora”?
Uma coisa que eu tenho pensado é o acesso à justiça, né? Então, por exemplo, nesse viés que a gente está discutindo, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, onde estou atuando hoje, ela trabalha -, a gente está entregando as certidões de óbito agora, com a comprovação de mortes dessas pessoas. Então essa pessoa, ela desapareceu sob a guarda do Estado, portanto, ela é uma pessoa que morreu a partir da ação do Estado. Então, as certidões de óbito que a gente está entregando agora dizem isso. Mas a sistemática que foi estabelecida para que essa pessoa fosse considerada um desaparecido político e agora morto, as famílias tinham que fazer a solicitação e entrar com processo e comprovar que essa pessoa havia desaparecido e em quais circunstâncias. A família tinha que fazer isso, não era o Estado. Então, quantas famílias puderam fazer isso? Quantas famílias tinham recursos para fazer isso? Por exemplo: o Francisco Manoel Chaves, do Araguaia, que não há notícia nenhuma dele; há uma grande possibilidade que ele seja um dos “corpos” que foram encontrados num cemitério lá do Araguaia; duas pessoas foram identificadas; há uma terceira e há uma grande possibilidade de que seja ele o outro “remanescente” que a gente tem lá, mas não se sabe, pois, a família dele nunca foi encontrada. Quem são essas pessoas? Quem? Quem vai falar por elas?
Na Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos sua atuação é nacional?
Sim, é Comissão de Estado, ela foi criada no governo Fernando Henrique Cardoso, em 96; ela foi “ilegalmente” extinta no governo do Inominável e foi retomada em agosto de 2024 e estamos retomando os trabalhos.
Cecília, você teme retrocesso nessa “luta”, nas discussões de gênero?
Eu acho que o que a gente acreditava até alguns anos atrás era que essas conquistas já estavam consolidadas e que isso já estava dado e que, portanto, a gente podia seguir à frente para outras. Mas o que eu percebo hoje é que isso foi conquistado, mas não está assegurado; a gente vai ter que continuar brigando por essas coisas, não sei por quanto tempo mais. Então, se não está assegurado, a gente pode perder. Eu acho que o que acontece é que hoje todo mundo tem consciência disso; claro, sempre tem um Trump que vai dizer “não, vocês não têm esses direitos”, mas até ele dizer que a gente não tem esses direitos significa que ele reconhece os direitos. Então, isso todo mundo sabe, esses direitos estão claros para todo mundo, mas significa que eles estão assegurados? Eu acho que não. Eu acho que a gente vai ter que continuar defendendo tudo isso, a gente vai ter que continuar brigando por eles durante muito tempo.
Não dá para baixar a guarda?
Não, não, não teremos esse descanso.
