top of page
Âncora 1
465574547_10234371159638335_2702042180414931812_n.jpeg

''A BOA LITERATURA É AQUELA QUE DÁ ESPAÇO PARA O LEITOR, CONFIA NO LEITOR, DÁ ESPAÇO PARA ELE COMPLETAR.
O LIVRO SÓ FICA COMPLETO COM CADA LEITOR''

 

MARIA VALÉRIA REZENDE

De repente diante de mim, na tela do computador, ela surge, me cumprimenta e já engata uma pergunta: “Posso fumar?” Respondo que sim. Ela pega o cigarro, coloca na boca, acende e solta lentamente a fumaça. Ela relata que amigos dizem que o cigarro faz mal. Uma interjeição e emenda: “Faz 70 anos que fumo, vou parar agora?” E mais uma interjeição. Sorrio, eu que não gosto de cigarro, não me importo, a fumaça e o cheiro são virtuais. Maria Valéria Rezende, freira, educadora popular, escritora premiada. Paulista de Santos. Uma mulher livre e feminista, como ela mesma se autointitula. Oitenta e dois anos, a maioria deles dedicados a andar pela periferia do mundo e ajudar os invisíveis, aprender com essas pessoas que são os principais personagens de suas obras literárias. Valéria, a mais velha de seis irmãos - cinco mulheres e um homem -, desde criança foi estimulada pelo pai a ensinar. Com duas licenciaturas, em língua e literatura francesa e em pedagogia; mestrado em sociologia, é fluente em inglês, francês, português, italiano, espanhol e se vira num punhado de dialetos, frutos de vivências neste vasto mundo. É com essa mulher inquieta, sempre em busca do conhecimento, que vamos conversar e aprender.

 

Você nasceu em 1942, em Santos, 8 de dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição. Você é da Congregação de Nossa Senhora – Cônegas de Santo Agostinho. Como foi sua trajetória de uma menina de Santos até se tornar uma freira?

Eu fiquei até 71 em São Paulo, mas aí a situação estava muito tensa porque era o período pior da ditadura. E eu tinha problemas. Na periferia, lá onde eu morava, no Jardim Nordeste, havia vários militantes de várias organizações e a gente trabalhava no apoio ao pessoal da oposição sindical que estava tentando retomar o Sindicato dos Metalúrgicos. E aí um companheiro foi preso, torturadíssimo. Por sorte, havia uma menina do bairro que era enfermeira no Hospital do Exército para onde levaram ele para se recuperar e, depois, torturar mais porque esse prisioneiro não tinha dito nada. E ele mandou um recado para mim por ela: “Diga para Valéria que se cuide porque a coisa que mais me perguntam é quem é que faz esses livrinhos?” Porque eu fazia resumos com linguagem popular de livros básicos de sociologia, de economia para os trabalhadores, para os operários. E aí realmente a coisa já estava muito feia porque eu visitava regularmente os presos. Tinha a família do Frei Betto, como não morava lá, me inscreveu na justiça como representante da família. Então eu todo sábado eu ia visitá-lo. Aí a coisa ficou feia e as irmãs da comunidade avisaram a Congregação, eu não pude ficar mais lá e fui enviada para a Europa. Eu passei o ano de 72 andando pelo mundo a serviço da Congregação, mas sem poder voltar. Depois, na hora de voltar, a minha superior geral aconselhou que eu não voltasse para São Paulo. Em dezembro de 72, eu tendo passado pela Europa, pela Argélia, pelo pelos EUA e de lá eu vim embora direto para o nordeste.

 

E você foi para Pernambuco e, em 77, se estabeleceu em João Pessoa, na Paraíba?

Não, não em João Pessoa, foi no interior da Paraíba, em Guarabira, na região do Brejo da Paraíba onde eu fiquei até 88. Em 89 é que eu vim para João Pessoa.

Quando a gente fala Maria Valéria Rezende logo pensamos na escritora famosa, premiada, ganhou o Jabuti; o prêmio Casa das Américas, de Cuba; o prêmio Oceano e outros. Mas eu queria perguntar: quem é Maria Valéria Rezende?

Eu sou uma educadora popular. Desde criança eu me lembro que o meu pai era médico da Santa Casa, a única assistência médica gratuita que havia para os indigentes, como se dizia. E meu pai era obrigado a dar alta para os pacientes quando eles saíam da crise, porque tinha fila de gente em pior estado esperando para ser atendido. Então, meu pai, aos sábados e domingos, ele se levantava às quatro da madrugada e ia aonde viviam aquelas pessoas e ia visitá-las. Nas praias, nas ilhas onde moravam os pescadores, no litoral sul, a estrada era de barco, vinha um pescador com a catraia buscá-lo. Ou então ele subia os morros de Santos onde moravam os pobres. E quando eu aprendi a ler, eu tinha de seis para sete anos, papai me disse: “Agora você vai comigo, minha filha. Você pega os livros de história para você ler para as crianças de lá, porque eles não sabem ler e nem tem livros.” E aí foi uma experiência absolutamente fundamental na minha vida, porque eu ia com o meu pai, por exemplo, para a praia do Góes, ali em frente, e papai acabava indo de casa em casa e ele demorava muito mais do que eu para ler meus livrinhos de história que eu tinha levado. E aí eu ficava brincando com as crianças de lá. Então, eu aprendi a nadar; aprendi a descobrir qual é o marisco que presta, tirar marisco; e eles me contavam histórias de pescador, que é uma coisa fantástica. Ou quando eu subia o morro, tem um morro lá em Santos, cuja descida do morro dá na porta do Cemitério do Saboo. A gente não tinha lugar no morro para se sentar com as outras crianças, então a gente descia correndo e se enfiava no cemitério, sentava-se em cima das campas, debaixo de um flamboyant. Eu contava minhas histórias e eles me contavam histórias de assombração. Depois a gente brincava de pique e esconde no cemitério. De tal maneira que quando eu tinha uns 18 anos, eu estava na equipe nacional da JEC (Juventude Estudantil Católica), eu viajava pelo Brasil. Eu vim ao Nordeste, e com as meninas daqui da JEC, envolvidas com as primeiras experiências do Paulo Freire, eu tive a oportunidade de conhecer o Paulo Freire e de ouvir ele falar e explicar a sua filosofia da educação, porque o pessoal fala muito do método do Paulo Freire, não é simplesmente um método, porque o método é uma técnica; mas não é só o método, é muito mais do que isso, é uma filosofia da educação que se tem como princípio fundamental a troca de saberes, os diferentes tipos de saberes e a troca de saberes entre educador e educando e educando e educador. Então, quando eu ouvi Paulo Freire explicar isso pela primeira vez, foi como se ele tivesse me dado a justificativa daquilo que eu já vinha fazendo e desejava fazer.

 

Esse contato com o Paulo Freire não parou por aí?

Depois eu conheci muito o Paulo Freire de várias maneiras, quando ele estava exilado no Chile eu fui para lá fazer um curso com ele; fiz também um estágio acompanhando o Paulo no trabalho, no campo. Foram muitos encontros.

Valéria, você disse várias vezes que as pessoas acham que a freira é uma boboca e que você se tornou freira porque não conseguiu arranjar marido.

(Risos) Olha, eu sou de uma geração que quando você começava a ficar mocinha já te perguntavam: “Você já resolveu se quer casar ou quer ser freira?” (Risos) Eu como a mais velha de seis; e minha mãe que era uma pessoa incrível, trabalhava muito, era uma grande artista, mas era dureza a vida dela com aquela criançada, e eu já tomava conta de “filhinho” eu tinha prática essa prática. E por outro lado, eu tinha muito contato com duas pessoas que foram importantes nesse período da minha adolescência, da minha pré-adolescência, que era o meu primo, filho do poeta Vicente de Carvalho, o filho mais novo dele, o Arnaldo Vicente de Carvalho, que era jornalista internacional. Ele viajava e ele me mandava sempre um cartão postal desses lugares que chegava muito depois dele, porque vinha de navio. E outra pessoa era a Patrícia Galvão, a Pagu, que também contava histórias da volta ao mundo que ela tinha dado. Então esse negócio de “eu quero dar a volta ao mundo, eu quero andar pelo mundo, eu não quero ficar fechada numa casa cuidando de criancinha, que eu isso eu já sei, já fiz.” Então, como eu estava envolvida com a JEC, eu tenho fé, tinha já a prática da meditação diária do Evangelho, que era o método da JEC - ver, julgar e agir -, ver a realidade, julgá-la à luz do Evangelho e partir para a ação; então, para mim, a alternativa de ser missionária era uma boa resposta, um bom projeto e nunca me arrependi. Dei quatro voltas ao mundo sem nunca pagar a passagem (risos). Contestando esse negócio de que as freiras são ignorantes, são bobinhas, é o contrário. Nossa congregação criou uma faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Sedes Sapientiae, justamente porque para as mulheres era muito difícil fazer universidade, porque os pais não queriam que elas fossem para as faculdades onde estavam os rapazes, ser minoria. Então elas criaram essa faculdade no final dos anos 30.

 

Com quantos anos você deu os votos?

Eu entrei na congregação em 65, portanto eu tinha 22 anos. Quando eu terminei o noviciado e fiz os votos temporários, a madre Maria da Paz, que era diretora da faculdade, me chamou e disse: “Bom, agora você vai fazer o doutorado em Louvain” – Universidade Católica -, Bélgica. E eu respondi: “Quem disse que eu quero ser doutora? Eu quero ser educadora popular.” E aí elas toparam e eu fui para o Jardim Nordeste, que naquele momento era o extremo da zona leste de São Paulo. Hoje está no meio de São Paulo. Naquele tempo eu lembro que nossa cerca do fundo do quintal dava para o mato e aí era uma légua até chegar em Itaquera. Eu tinha uma bicicletinha a motor que eu ia lá e voltava, andava por ali tudo trabalhando com educação popular.

 

Como você analisa os votos de castidade, pobreza e obediência?

São votos de liberdade, de estar sempre livre para responder aos apelos do povo, do povo de Deus, das necessidades. Não estou presa a ninguém, nem a propriedades, nem a uma família. Se precisar eu vou ao outro lado do mundo. Eu posso ir porque não estou abandonando ninguém. É a obediência é aos apelos de Deus. Pelo menos na nossa congregação é assim. Sou uma pessoa livre para responder aos apelos. Agora, claro, eu não estou muito livre porque estou velhinha, meio cega, meio fraca do juízo. Então é mais complicado, não tenho a mesma capacidade de correr mundo como eu tinha.

 

Você se considera uma mulher feminista?

Completamente.

 

E como é ser feminista numa instituição tão machista, misógina como a igreja católica?

Olha, nós somos livres porque nós da Congregação de Nossa Senhora – Cônegas de Santo Agostinho, não nos submetemos à estrutura eclesiástica, a um sistema eclesiástico, porque a Igreja é uma coisa mais ampla. Sempre que me falam da Igreja, digo: “Do que você está falando? Você está falando da comunidade, daqueles que têm fé e tentam seguir, ou você está falando do sistema eclesiástico?” São duas coisas que não têm nada a ver. E nós não pertencemos ao sistema eclesiástico. Inclusive porque a nossa congregação é de direito pontifício e não de direito diocesano.

 

O que significa isso?

A igreja não nos dá nenhum tostão. O bispo nem sabe que a gente existe. Somos leigas como todo mundo e vivemos em comunidade, fazemos um voto de dedicar a vida a serviço dos outros. Só isso!

 

Valéria, você fala essa questão do voto dedicado aos pobres, às pessoas invisíveis. E me vem à lembrança a Teologia da Libertação, movimento que começou nos anos 60.

A Teologia da Libertação foi gerada pela prática dos movimentos de juventude de ação católica, na América Latina. O próprio... o teólogo da Teologia da Libertação..., ô meu Deus, eu estou assim, me escapa alguns nomes, até o meu escapa. É o Gustavo Gutiérrez – (pai da Teologia da Libertação) -, no prefácio da primeira edição da Teologia da Libertação, ele diz isso: “Eu não estou criando uma teologia, eu estou sistematizando a teologia que foi gerada pela experiência, reflexão dos movimentos de juventude e ação católica.”

 

Na década de 80, o papa João Paulo II acabou com a Teologia da Libertação.

O que ele fez, na nomeação dos bispos, foi escolher cuidadosamente bispos conservadores. Mas isso vai passar, porque o papa atual, que eu conheço muito bem, porque eu trabalhei na Argentina, ele era o arcebispo de Buenos Aires, eu tive bastante contato com ele. É um homem muito diferente disso.

 

Mas me parece que os maiores inimigos dele estão dentro da igreja.

É, pois é, dureza. O mundo todo está na beirada do abismo, em todos os aspectos. Ou a gente dá um passo para trás e repensa ou está tudo complicado, complicado demais.

 

O seu romance Carta à Rainha Louca se baseia em documentos que, anos atrás, você encontrou durante uma pesquisa que começou no México e se estendeu a outros países durante décadas. É uma história que dá voz às mulheres?

Em 1980, eu já estava aqui no Nordeste, metida com os trabalhadores rurais; fui muito ligada à Margarida Alves, assassinada pela repressão dos usineiros, e a situação estava meio tensa, e como eu tinha prestado um serviço ao CEHILA - Comissão de Estudos de História da Igreja na América Latina, eu tinha feito uma versão popular do primeiro livro A Igreja no Brasil Colônia, de Eduardo Hoornaert, essa versão popular se chama Não se pode servir a dois senhores. E aí o pessoal do CEHILA me ofereceu para fazer um curso no México. Eu aceitei, passei na Nicarágua para contribuir na campanha de alfabetização, que naquele tempo era uma revolução – (Revolução Sandinista 1979 – 1990) -, depois virou uma coisa estranhíssima. E de lá eu fui para o México. E era um curso de seis meses e tinha que ter um projeto de pesquisa. Então eu me propus a pesquisar a mulher na história colonial da América Latina. Quando eu comecei a ir para os arquivos eu descobri que a maioria dos documentos eram os homens falando sobre as mulheres. Os únicos textos que eu encontrava escritos pelas mulheres, eram escritos pelas freiras e, em geral, eram cartas. Eu passei seis meses pesquisando, voltei com um calhamaço e aí eu passei a pesquisar, ficou uma espécie de hobby, durante 40 anos, desde 1980. Cada vez que eu passava por algum lugar onde tinha conventos do tempo colonial, cada vez que eu ia para a Europa, parava em Lisboa, me enfiava no Arquivo Histórico Ultramarino, por interesse de descobrir mais e mais e mais. E quando foi recentemente, eu pensei, ué, aquela história toda eu preciso contar essa história, então vou escrever um romance. Escrevi Carta À Rainha Louca, um livro realmente fruto de pesquisa. Ali não inventei nada (risos).

 

É uma linguagem que é da época mais que é acessível?

É, eu conferi e não tem palavra nenhuma ali que já não estivesse em uso no final do século XVIII. É aquela maneira meio arrevesada de construir o texto.

 

É um livro feminista?

Ah, é, absolutamente (risos). E eu tive muito contato com a Pagu. Ela era um exemplo de feminista. Aliás eu tenho um livro que saiu há pouco que é Patrícia Galvão: Pagu, militante irredutível.

 

Você tinha seus encontros com a Pagu, em Santos?

Em Santos, porque desde 1953, mais ou menos, até morrer, ela viveu em Santos. Toda tarde ela saía da Tribuna, ela escrevia no jornal várias colunas, ela se sentava num bar que tinha lá em Santos, numa praça importante, e ficava lá a disposição dos jovens. E a gente ia lá e fazia perguntas. Ela foi uma grande educadora. Depois ela se dedicou a estimular o teatro. Então ela orientava todos os grupos de teatro amador. Santos era uma agitação só e eu conversava com ela quase todo dia.

 

E seus pais não implicavam com você?

Pelo contrário. Olha, meus pais eram de comunhão diária, mas um dia, ficou na moda nos anos 50, todos os jovens irem para a juventude do Partido Comunista. Eu tinha uns 13 anos, cheguei em casa e disse para o meu pai: “Eu entrei no partido de comunista.” Aí, papai disse: “Você perdeu a fé, minha filha?” Eu falei: “Não, pai, não perdi a fé. Eu quero saber o que é isso.” “Então você tem que ler primeiro O Capital, de Carl Marx.” Ele não encontrou nas livrarias de Santos e encomendou por radioamador a um comandante de navio para comprar a edição em francês. Eu comecei a ler e quando fui à reunião do partido com o livro debaixo do braço o “chefinho” lá perguntou: “O que é isso?” Eu respondi: “É O Capital, de Carl Marx.” Ele disse que eu não podia ler ainda, que eu não tinha recebido licença do partido, que eu ia interpretar mal. Eu falei: “O quê! Meu pai, que é de comunhão diária, não me proibiu de ler O Capital e esse garoto aí quer que eu não leia?” Aí tinha uma amiga que era da Juventude Estudantil Católica e eu perguntei se lá na JEC podia ler a Bíblia. Ela disse: “Não só pode como deve ler todos os dias e fazer uma meditação.” Aí eu fui para a JEC e eu li O Capital e a Bíblia. Eu contei essa história para a Pagu e ela falou: “Pois fez muito bem, nunca deixe nenhum homem mandar em você.”

 

Você ainda lê muito?

Eu leio um livro por dia. A partir das seis da noite até uma da manhã. Eu não leio mais livro de papel pois eu quase não enxergo. Então eu leio no Kindle com a letra bem grande. Mas assim mesmo não dou conta de quase nada, não dou conta de tudo o que tem para ler, ainda mais que agora tem uma espécie de epidemia literária, porque todos os famosos têm que escrever um livro.

 

Você se lançou no mercado editorial com que idade?

Eu já escrevia muito, mas não era ficção. Primeiro escrevi vários livros para educação popular. Não se pode servir a dois senhores, por exemplo, nem tem o meu nome completo, só MV Rezende. Depois teve uma história da classe operária que eu fiz para Ação Católica Operária no começo dos anos 70, que nem tem meu nome. Eu escrevia muito folheto de cordel para educação popular, fiz filme, fiz peça de teatro, novela de rádio, mas eu nem assinava.

 

Vasto Mundo foi seu primeiro livro de ficção que você lançou em 2001, aos 59 anos?

Eu não parei para escrever o livro. Eram cartas que eu escrevia para minha avó. A minha vó, que era sobrinha do poeta Vicente de Carvalho, gostava muito do que eu escrevia, nunca se conformou de eu não querer ser escritora. Então, quando eu vim morar num povoado no interior da Paraíba, eu escrevia todo um mês uma carta para minha avó e eu falava : “Ô vovó eu estou aqui sentada na frente da janela da minha casinha e estou vendo passar fulano de tal.” Aí com o que eu sabia do fulano de tal e com o que eu inventava, escrevia história dele.

 

Era uma época difícil?

Sim, eu não tinha dinheiro, porque eu vivia de troca de serviços e bens direto com o povo. Quando eu ia viajar eu não tinha um tostão para comprar um presente para ninguém, eu pegava uma daquelas histórias, fazia uma cópia, pintava uma capinha com carvão, urucum, terra, o que tinha lá e levava de presente. Foi assim que um dia eu dei de presente uma história dessas para o Betto (Frei Betto). Uns dois anos depois, um editor me telefonou dizendo que estava com um conto meu que queria publicar, que queria que eu mandasse tudo o que eu tivesse, porque tinha mostrado para os outros editores, todos concordaram que não era uma principiante, mas ninguém nunca tinha visto meu nome em lugar nenhum, que eu mandasse tudo. Eu falei: “Não é engano. Eu não sou escritora. Não mandei nada para nenhuma editora.” Ele começou a ler, eu reconheci. E na verdade, o Betto me pagou na mesma moeda, porque o primeiro livro dele fui eu que carreguei tudo para fora do país.

 

Suas obras têm sempre esse sertão, as comunidades distantes.

É tudo ambientado, inspirado no que eu vi. Outros Cantos, não sei se você leu?

 

Li esse e li Quarenta Dias.

Quarenta Dias eu passei 20 dias, andando à noite nas ruas e nos becos de Porto Alegre.

 

Em Outros Cantos a história se passa no sertão nordestino?

Outros Cantos é o primeiro povoado aonde eu cheguei no Nordeste, Caraibeiras.

 

A Maria, personagem do livro, a professora popular, ela não é a Maria Valéria?

Não, a minha personalidade é completamente outra. Eu não sou uma pessoa sentimental como a narradora da história, não. Mas a realidade do lugar, onde todo mundo se dedicava, todo mundo só tinha uma maneira de sobreviver, que era tecer rede, isso era assim.

 

Quando eu li Outros Cantos, com a Maria dentro do ônibus narrando o embarque e o desembarque dos passageiros, eu fiz uma analogia à vida e morte. E ela retornar ao povoado Olho d’Água, 40 anos depois, eu associei à história dos 40 anos que o povo judeu ficou perdido no deserto.

É isso, mas não foi uma coisa que eu parti disso. Aconteceu aí e, pronto, eu explorei.

 

E porque quando o escritor encerra a história ela não termina ali, ela vai se construindo, se reconstruindo no leitor, né?

Claro, a boa literatura é aquela que dá espaço para o leitor, confia no leitor, dá espaço para ele completar. O livro só fica completo com cada leitor. Aliás, os meus livros não têm fim, né? Eu poderia continuar, continuar, continuar, voltar a escrever uma continuação.

 

Em Outros Cantos é também uma denúncia da violência do regime militar e dos poderosos?

Claro, claro, não tem nem dúvida. Todos os meus livros têm isso. O Vasto Mundo também tem, está cheio, inclusive algumas das histórias são verdades. Por exemplo, a história da greve dos canavieiros, em que as prostitutas descem e vão ajudar a fazer o piquete, isso aconteceu. Muitas das coisas ali são fabulações em cima de fatos realmente acontecido.

 

Durante o período da ditadura militar você ajudou muita gente a esconder, a tirar pessoas do país, mas, de certa forma, você também foi perseguida.

É, chegou um momento em que eu não podia mais ficar em São Paulo.

 

Você ajudou um preso político famoso, o Frei Betto, ao enviar à Itália a primeira obra dele. Como foi essa história?

Eles conseguiram autorização para fazer artesanato na cadeia. Então eles começaram a fazer um cinto de couro largo, estava na moda naquele tempo, e quando eles costuravam o forro, eles botavam as cartas por dentro. Havia dois cintos. Cada vez que eu ia com aquele cinto e chegava lá no meio do pátio com todas as visitas, eu trocava de cinto, eu devolvia. Chegava em casa, eu tinha que descosturar o cinto, tirar as cartas, costurar de novo para ir com o cinto e trocar. E aí eu chegava em casa, transcrevia as cartas e mandava para o destinatário. Eu guardava cópia e levei as cópias todas das cartas dele para a Itália e conseguimos editar. Foi o primeiro livro dele, se chamava Dai Soterranei della Storia (Cartas da Prisão - 1971).

 

Valéria, a Maurina Borges da Silveira, foi, oficialmente, a única freira presa, torturada e que sofreu violência sexual. Depois ela foi banida para o México em 1970. Ela foi trocada no sequestro do cônsul japonês, em São Paulo, Nobuo Okuchi. Você esteve com ela no México?

Fazia dez anos que ela estava lá. Foi durante o ano de 1980 que eu passei oito meses no México, período que eu fiz a pesquisa que resultou no livro Carta À Rainha Louca, eu morava num lugar que ficava perto do convento onde ela estava morando. E aí eu soube que ela estava lá, era um convento que não era da congregação dela. E ela estava lá, abrigada, coitada, porque a congregação dela não tinha casa no México. E aí eu comecei a ir visitá-la. Quase toda semana eu passava lá para fazer uma visitinha, porque ela estava muito isolada.

 

Você se lembra de algo que chamou mais a sua atenção?

A gente não conversava sobre o que aconteceu, a gente conversava de outras coisas ou às vezes nem demorava muito, eu levava um livro para ela, levava alguma coisa. Mas uma coisa que me impressionou muito naquele momento e que ela ficou tão atingida por tudo que lhe aconteceu, eu creio, que ela não falava mais nem português nem espanhol. A fala dela era uma mistura das duas coisas, sabe? Eu acho que era efeito mesmo de tudo que ela sofreu, e me preocupava a solidão dela, sabe?

 

Ela foi banida contra a vontade dela.

Eu acho que puseram ela na lista de troca pelo cônsul justamente porque era um caso comovente.

 

Várias pessoas disseram que a igreja quis mandá-la para o México porque ela estaria grávida.

Não, não é isso. Não teve nada.

Como você descreveria a Maurina?

Eu a via como vítima do que ela tinha passado. E justamente uma coisa que me impressionava era isso, a dificuldade de fala dela. E é por isso que eu ia lá, porque eu vi a solidão dela, me afetava muito o isolamento dela.

 

Na sua opinião, a Maurina foi vítima do machismo de estado e quanto da igreja?

E ela foi vítima também da resistência, porque eu acho, pelo que eu conversava com ela e pelo que eu via, que os meninos que faziam reunião lá no convento dela, ela simplesmente cedia o espaço porque era comum isso. Todos os movimentos de juventude, a JEC a JUC, usavam o espaço para se reunir. Eu tenho a impressão de que ela não sabia realmente qual era o teor das reuniões que esses meninos faziam.

 

Mas, Valéria, ela foi consciente ao destruir documentos para não os prejudicar os jovens e a Maurina não entregou ninguém.

Ela sabia que havia repressão, que os jovens estavam sendo reprimidos, tudo o que envolvia os jovens, mas eu acho que ela não tinha consciência de realmente de tudo o que eles estavam fazendo.

 

E ela foi uma vítima também da tortura de gênero.

Foi uma coisa horrível, tanto que eu percebi que ela tinha ficado profundamente abalada. Por isso que eu ia lá, porque eu era a única brasileira ali, a única pessoa que queria ter uma relação um pouco diferente, porque as outras eram freiras mexicanas, de outra congregação, me parecia que não havia muita interação. Além de tudo que ela tinha sofrido, havia o efeito do isolamento, do exílio.

 

O caso da madre Maurina, foi emblemático, mas muitas religiosas, como você, foram resistência à ditadura militar?

Sim, não era nada fácil não.

 

E hoje, Valéria, você uma mulher livre, feminista, escritora, na sua rotina você sente o etarismo?

Eu não sinto muito não. É porque eu sou esperta, entendeu? Então tenho uns truques. Meus amigos com quem eu convivo são 30, 40, 50 anos mais novos do que eu. E o meu cabelo não fica branco. E outro truque é que eu nunca me olho no espelho de óculos, dessa maneira eu não vejo as rugas (risos). Agora eu sinto a idade, por exemplo, eu sempre acho que na minha cabeça tem dois HDs; um HD de programas que eu acho que ainda está funcionando, porque não estou dizendo coisas absurdas, porque toda hora me chamam para fazer palestra. E o HD que grava os dados. Então nomes, datas, lugares, essas coisas, aí eu me atrapalho muito.

 

No mundo da literatura você não sente machismo?

É, depois que a gente criou o movimento do Mulherio das Letras, foi um momento que a gente começou a dizer que a mulher escreve também e pode escrever e sabe escrever.

 

Quando começou e quem criou esse movimento?

Dizem que fui eu (risos). Foi em 2016 na Flip. Você bota no Facebook Mulherio das Letras e você vai encontrar diversos grupos pelo Brasil afora, na Europa, nos Estados Unidos, em vários lugares. É um grupo que não tem estrutura nenhuma, é completamente horizontal. E hoje você não vai convencer mais mulher nenhuma de que ela não pode escrever. Tanto é que quando você olha agora as listas dos prêmios, tem um monte de mulher.

 

E você gosta de escrever e descrever o universo dos sertões da vida.

Sim, eu escrevo para contar aos outros que não viram aquilo que eu vi, que eu tive o privilégio de poder ver.

 

Suas obras relatam a vida de pessoas que têm uma vida material pobre, mas uma existência repleta de riquezas.

Pois é, é freiriana essa minha posição também, porque eu acho que os intelectuais precisam aprender do povo.

 

Valéria você vive com outras irmãs religiosas em João Pessoa?

Somos só eu e mais uma porque as congregações ativas estão morrendo; os mosteiros de gente enclausurada estão lotados, porque quem quer fugir do mundo se enfia lá. E as monjas e as freiras que têm que trabalhar como todo mundo, porque a gente não recebe nenhum tostão da igreja, nem nada, a gente é leiga e tem que dar conta da vida, a gente tem que trabalhar. Eu ganho fazendo palestra, vendendo livro, direito autoral, escrevendo orelha e prefácio do livro dos outros e cobrando uma merreca. Tem que batalhar. Agora a igreja eclesiástica, dos padres, não dá nada, não quer nem saber.

 

Uma mulher peregrina, como você, que viajou o mundo, conviveu com pessoas as mais diversas que influenciaram na sua escrita?

Eu convivi com pessoas incríveis, andei pelo mundo inteiro, conheci tudo o que é gente. Fidel Castro, Gabriel García Márquez. Eu passei muito tempo em Cuba porque o Fidel descobriu, em 1980, que a gente usava a metodologia freiriana. Então, durante uns 15 anos, eu passava cinco, seis meses por ano em Cuba fazendo a formação metodológica dos dirigentes, dos movimentos de massa, da escola de formação de quadros do partido, de tudo isso.

 

Valéria, hoje você peregrina muito através de sua escrita?

É, e assim mesmo ando um bocado. Eu estou tentando ficar mais quieta porque eu estou com problemas de saúde, claro.

 

Você está escrevendo um novo livro?

Eu tenho cinco romances começados que eu não sei se eu vou conseguir acabar algum (risos). Quando eu tenho uma ideia e aquela a voz narrativa me aparece, aí eu passo uma semana escrevendo para não perder aquela voz, mas depois eu não consigo terminar. E aí eu tenho que ganhar a vida, e direito autoral é gorjeta de garçom. Se a editora banca, ela fica com 40% do preço de capa; 20% do distribuidor; 30% da livraria e só 10% que é do autor. É absurdo, direito autoral é ridículo.

 

Valéria, agradeço o bate papo, pelas histórias sem fim, como você descreveu as histórias de suas obras ficcionais.

E sobre a madre Maurina, coitada, ela merece sim que vocês a recuperem. Obrigada, tchau, tchau!

as vozes da resistencia branco.png
  • Spotify
  • Deezer

© 2024 por AS VOZES DA RESISTÊNCIA - todos direitos reservados. 

bottom of page