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''EU ACHO QUE SE NÃO FOSSE ESSE PASSADO EU NÃO SERIA QUEM EU SOU HOJE. EU NÃO TERIA A DIMENSÃO QUE EU TENHO, TANTO DA POLÍTICA COMO DAS OUTRAS PESSOAS, DA COMPAIXÃO, DA GENEROSIDADE''

RITA MARIA DE MIRANDA SIPAHI

Rita Maria de Miranda Sipahi, advogada e conselheira da Comissão de Anistia, órgão do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. A experiência, traumática, vivida como ex-presa política dá à Rita a autoridade para fazer parte, como convidada, da Comissão de Anistia, desde que foi criada pela Lei nº 10.559/2002 e que teve os trabalhos retomados em 2023, no governo de Luís Inácio Lula da Silva, após de ter sido interrompido por Jair Bolsonaro. Rita Sipahi iniciou sua militância política em 1962, no movimento estudantil onde já se apresentava a necessidade de uma organização revolucionária. Nascida em 1938, em Fortaleza, Rita foi presa no Rio de Janeiro pelos militares, em 1971. Ela tinha dois filhos pequenos, Paulo e Camila, do primeiro marido, Antônio Othon Pires. Da capital carioca, Rita foi transferida para São Paulo e passou pelo DOI-Codi, Deops/SP e Presídio Tiradentes, onde ficou com outras presas políticas, como Dilma Rousseff. Ao todo, foram onze meses de prisão. Sofreu toda forma de tortura, física e psicológica. Apesar do sofrimento que passou nas mãos dos torturadores, continuou a luta política após ser libertada. Até hoje atua politicamente. Rita é militante do Partido dos Trabalhadores e não desiste de lutar por justiça em nome das vítimas da ditadura civil-militar brasileira (1964-1985).

 

Rita, os anos passam, mas a tortura é algo que permanece na memória e no corpo também. Quando você conseguiu falar sobre o que lhe aconteceu na ditadura?

Durante muito tempo eu não falava sobre a tortura. Eu acho que eu comecei a falar quando a gente na Comissão de Anistia começou a discutir a questão da tortura e eu já participava da comissão a partir do momento em que a gente fez um grupo em São Paulo com as presas políticas para falar sobre aquele período porque a gente não falava nada. E uma de nós, a Lúcia Coelho (psicóloga, filósofa, ela se autoexilou na França) conheceu uma psicanalista que não sabia como tinha sido o processo de repressão e tortura das mulheres aqui no Brasil. Quando a Lúcia ia retornar ao Brasil, essa psicanalista pediu para que a Lúcia criasse um grupo de discussão sobre o tema para fazer um relatório sobre o que aconteceu com as presas políticas e a tortura. Foi muito importante esse momento porque a maioria das pessoas, éramos seis mulheres e as mulheres não queriam falar naquele tempo porque era aquela ideia de “ah, já passou” e a gente conseguia se entender nesse processo, conseguiu sair bem e ninguém falou nada. Eu, por exemplo, tinha toda clareza de que ninguém tinha caído por minha causa, então isso era motivo suficiente para deixar tudo que sofri para trás. Mas a discussão no grupo foi mostrando para a gente que não era bem assim. Eu lembro que uma das mulheres do grupo dizia que “olha, eu só tenho umas marcas de cigarro nas costas”, e a maioria se recusava a falar, então foi difícil para a Lúcia conduzir o grupo. Isso aconteceu antes de eu entrar na Comissão de Anistia, em 2009. Por ter sido uma presa política eu fui convidada a participar da Comissão de Anistia cujo objetivo principal é o da reparação política. E a experiência de ter participado do grupo fez com que eu, estando na comissão, começasse a perceber em alguns momentos como era difícil para as pessoas durante o julgamento falar sobre aquele tempo, a maioria não conseguia se expressar. A Comissão de Anistia, além dos julgamentos, se constituiu como conselho e era um conselho muito atuante. Era um conselho que tinha pessoas muito expressivas das suas regiões: professores, advogados, nós tínhamos muitos juristas já entre a gente desde o começo. A formação da Comissão de Anistia, todo o desenvolvimento desse processo de justiça passa pela primeira Lei de 1979, assinada no governo do último ditador militar João Baptista Figueiredo. O grande problema dessa lei é que ela trata da anistia aos perseguidos políticos, mas ela trata também dos agentes da repressão e seus crimes como semelhantes aos crimes dos perseguidos políticos, daqueles subversivos e terroristas como eles chamavam, isso é um absurdo! Então essa lei põe numa mesma relação os crimes de tortura, crimes de lesa humanidade, com a resistência revolucionária. O direito de resistência está expresso na Constituição de 1988. Essa Lei de Anistia, de 1979, é que nós estamos questionando hoje, e é sobre essa questão que o ministro do STF, Flávio Dino, se refere quando ele fala nos crimes cometidos contra os desaparecidos políticos. Então essa Lei de 79 ela foi questionada e houve uma arguição ao STF que decidiu que ela não seria revista. É essa Constituição de 1988 que vai possibilitar a criação da Lei de Anistia em 2002. Então é a Constituição que garante o estatuto, como a gente chama, de anistiado político, ela é responsável por criar um outro modo de entender sobre o perseguido político. Ela dá um estatuto a ele. A Constituição vai tratar a questão da anistia política, não como a Lei de 79 tratou. A Lei de Anistia de 79 tinha uma reciprocidade. Ela permitia que o torturador ou agente da repressão também fosse anistiado. Numa outra interpretação, a Lei de 1988 vai dizer que somente aqueles que foram perseguidos, realmente, e que tinham direito à resistência, é que merecem a anistia. Só que isso não vem sendo considerado e não foi considerado inclusive pelo Supremo até hoje. Hoje é o ministro Flávio Dino quem está recuperando, um pouco, essa questão e essa discussão toda.

 

A Comissão de Anistia e a Comissão Nacional da Verdade trabalham em vertentes diferentes?

A Comissão da Anistia é bem específica, ela trata da anistia política daqueles cuja perseguição foi exclusivamente política; não precisa ter sido preso ou ter sido torturado, não, todo aquele que se sentiu perseguido e que comprovar essa perseguição política feita por agentes do Estado, feita pelo Estado, é passível de reparação. Agora, a Comissão da Verdade tem outro sentido muito mais amplo que é mostrar como se deu toda essa perseguição política desde 1964. Todos aqueles setores que foram perseguidos, os indígenas, trabalhadores do campo, os trabalhadores da cidade, sindicatos e as pessoas em geral que foram perseguidas são chamados pela Comissão da Verdade para dar depoimentos. E foi uma comissão que se fez através do Congresso também e foi questionadíssima, muitos não queriam a Comissão Nacional da Verdade. Diziam que a história já tinha sido resolvida e os militares, nesse processo todo, isso é importante considerar, estiveram praticando uma política de medo e de esquecimento. Toda a sociedade foi atingida por essa política de medo. Eu lembro bem, não eram só as pessoas comuns, não eram pessoas organizadas, eu lembro bem, em algum momento uma pessoa do Partido Comunista que eu conheci dizia: “Olha, gente, vocês estão radicalizando muito com a criação do Partido dos Trabalhadores e tudo mais. Os militares vão voltar”. Os militares conseguiram inculcar na população esse medo de que eles voltariam um dia, como sempre estiveram voltando. Eu estou lendo agora o livro do Rodrigo Lentz, República de Segurança Nacional: militares e política no Brasil. O Rodrigo é um conselheiro da comissão e é um jovem muito estudioso. E eu acho que a gente acabou sabendo muito pouco de como os militares estiveram sempre participando da política, sempre dando golpes, é impressionante!

 

Eu tenho a sensação é de que os militares nunca saíram do poder, mesmo não estando de fato.

Eles nunca foram enfrentados por esses últimos governos, nunca foram enfrentados de uma forma muito mais, vamos dizer, contundente, de colocá-los numa situação em que eles tivessem que prestar contas à sociedade. Eles sempre foram poupados disso, por uma política da qual eles são responsáveis também. O esquecimento que se criou na sociedade, uma memória oficial de que não houve golpe, de que foi uma revolução. Eles sempre esconderam a história, sempre negaram: “Não, não aconteceu isso, era uma guerra”. O que é mentira, não é verdade, não era uma guerra. Eles decretaram o estado de exceção. Eles criaram a Constituição de 1967. Eles criaram os Atos Institucionais; se você ler os atos institucionais e a sequência deles é terrível; o AI-5, por exemplo, estabelece a pena de morte. Ao mesmo tempo houve sempre uma resistência na sociedade, mas essa resistência não levava em conta esse passado. Eu acho que é isso que nos diferencia muito dos argentinos e dos uruguaios. Eles têm essa consciência de que eles sofreram repressão; e o povo brasileiro, a maioria, até hoje não tem essa consciência de que ele foi reprimido.

 

E como você analisou, quando dos 60 anos do golpe militar, em 2024, a postura do presidente Lula ao cancelar as “comemorações” oficiais e dizer que isso era uma coisa do passado?

Olha, é muito triste, muito triste. Eu lembro que a sensação imediata foi de achar um absurdo, depois a gente conseguiu entender por que ele fez isso. 

Quando o Lula diz que não queria ficar “remoendo” o passado, diga-se, o golpe de 64, ele não enfraquece a luta daqueles e daquelas que em nome da memória, verdade e justiça buscam reparação às vítimas da ditadura civil-militar?

Claro, claro, ele enfraquece. A posição do presidente foi essa de deixar para lá, de virar essa página.

 

Você entendeu isso, mas você não aceita essa posição dele?

Não, pelo contrário, enquanto a gente não enfrentar isso, se não se tratar muito bem dos efeitos disso até 2026, nós estamos muito vulneráveis, porque tem uma ascensão no mundo todo, né, de ideias e valores que são do nazismo e do fascismo.

 

Essa postura do Lula em não querer o enfrentamento com os militares mais atrapalha do que ajuda?

Atrapalha! Você veja como são as coisas, vem o filme “Ainda Estou Aqui”. O filme foi a evidência maior de que essa situação não está resolvida no país. 

Apesar desse “pisar em ovos” do presidente, é interessante que é no governo do Lula que é retomado o trabalho da Comissão de Anistia e da Comissão dos Mortos e Desaparecidos Políticos?

Retomou, mas com muita dificuldade. Eu te digo que a gente não tem hoje a equipe que precisa ter para o trabalho administrativo, nem dinheiro para pagar as reparações. O Bolsonaro conseguiu tirar do orçamento uma verba que era fixa e que se renovava a cada administração, ele conseguiu acabar com isso. É importante destacar que agora, em pouco tempo, o presidente Lula nomeou a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, o que significa uma grande conquista.

 

E não tem perspectiva de recuperar essa verba?

Tem uma perspectiva, mas eu acho muito complicado, contraditório, até, porque tem a ver com as emendas. As emendas não podem pagar as reparações, elas só poderiam custear o trabalho da comissão. Então tem muito pouco dinheiro colocado no orçamento da Comissão de Anistia. Por isso é que é difícil fazer hoje os julgamentos.

 

E nem mesmo os pedidos de desculpas do Estado?

Os pedidos de desculpa até sim; mas a reparação nós conseguimos no começo do governo, em 2023, organizar um grupo que considerou que a reparação permanente e continuada, ela seria uma única para todas as pessoas. Antes não era assim. Antes, por exemplo, um médico que na sua carreira ganhava, vamos dizer, 8 mil, então a prestação mensal permanente e continuada por ter perdido o trabalho no hospital ou perdido o trabalho na universidade, equivalia a esse valor para o resto da vida dele. Então ele teria 5 mil, 8 mil. Hoje não, para todas as categorias são 2 mil reais.

 

A Comissão de Anistia tem uma nova presidente, a Ana Maria Lima de Oliveira, procuradora federal aposentada.

A Ana Maria é muito importante porque ela dá muita força ao coletivo. Então, não é só ela que administra a comissão, é o conselho que administra a comissão; ela coloca muito claramente isso. É um novo momento que se junta ao trabalho que a gente pode fazer a partir do filme “Ainda Estou Aqui”. Isso é importante falar. Esse momento é um momento que nós estamos considerando muito importante porque antes havia uma preocupação com uma questão que não estava dada para todos os conselheiros, que era a finalização da comissão em 2026. A Comissão não pode acabar, ela foi criada por uma lei e até hoje estão entrando os processos. Agora, depois desse filme, muitas pessoas que ao longo do tempo não pensavam nisso, ficaram sabendo que tem essa possibilidade de reparação se elas foram perseguidas, mesmo que com essa reparação a pessoa não vá receber os 2 mil, mas vai receber muito menos; porque tem dois tipos de reparação: a que é permanente e continuada e a que é por tempo de perseguição. Ele vai receber talvez 10 mil, 20 mil, mas ele vai ter principalmente o pedido de desculpa do Estado brasileiro. Isso a gente incluiu à Lei, em 2007, não existia na lei esse pedido, levando em conta exatamente aquilo que eu te falei, a nova elaboração e entendimento do que era perseguição e do que era o estatuto do anistiado, lá atrás, em 1988. Então o Estado brasileiro, ele reconhece que ele foi o agente da repressão, que ele perseguiu aquela pessoa e que aquela pessoa perdeu o emprego e por isso ele pede desculpa, não é perdão. Ele pede desculpas, porque o perdão ele tem uma reciprocidade; o Estado está pedindo desculpa, ele assume a responsabilidade de ter sido um perseguidor e pede desculpas à pessoa. Hoje a nossa grande tentativa é da comunicação sobre o que é a Comissão de Anistia, do que foi a perseguição e dos direitos que as pessoas têm se foram perseguidas. Se eu fui uma resistente política e me empenhei na luta contra a ditadura pela redemocratização e fui perseguida por isso, o Estado me deve essa desculpa, entendeu? Então, essa questão toda, dessa memória que eu (perseguida política) tenho e da memória oficial da ditadura de que eu era terrorista, eu era subversiva, continua em confronto, continua em conflito. O que a gente quer é que essa memória da resistência seja a memória do país.

 

Em que perspectiva se coloca essa memória?

Ela se coloca na perspectiva de todo povo brasileiro, porque toda a sociedade brasileira foi prejudicada, ela foi violentada pelo golpe lá atrás. Ela passa a constar, por exemplo, na educação, em livros ou na vida dessa nação. A Ana Maria, presidenta da Comissão, coloca que isso conste no currículo das escolas e que também haja a questão da clínica do testemunho (aquela clínica que eu te falei no começo). O que é o testemunho? O testemunho é a fala da pessoa e é uma fala pública, ela está falando para o outro. Então, ao falar com outro ele também está transformando o outro. Por isso que é testemunho.

 

Você é conselheira da Comissão de Anistia desde 2009, mas, quando o Jair Bolsonaro venceu a eleição, em 2018, você pediu para se afastar e, em 2023, com o Lula, você retornou à Comissão de Anistia. Rita, como você, que luta por justiça às vítimas da ditadura militar, analisa o fato de os extremistas de direita desfilarem pelos corredores do Congresso com cartazes pedindo anistia às pessoas que tentaram dar o golpe em 08 de janeiro de 2023? Os extremistas de direita tentam claramente colocar sob a mesma régua os golpistas de 8 de janeiro e os perseguidos políticos do golpe de 64.

A gente sempre esteve menosprezando a capacidade da direita de encontrar formas de colocar as posições dela e trazer a confusão. Eu acho que nós, enquanto esquerda, não levamos muito a sério essa capacidade. Eles têm junto deles grandes comunicadores e pessoas dizendo que eles é que foram prejudicados. Quando a gente sabe o que foi o 8 de janeiro, mas eles se apropriam disso e a imprensa divulga. E a gente sabe também como tudo isso é conduzido pela mídia alternativa, pelas redes sociais. É a memória deles contra a nossa. Como é que nós vamos resistir a isso? Como, de forma inteligente, vamos nos opor? A gente faz isso conseguindo cada vez mais falar sobre isso, falar sobre o filme, organizar, levar o filme às escolas, levar os alunos para assistir ao filme; ir ao Memorial da Resistência, aqui em São Paulo, que tem um trabalho fantástico.

 

Rita, a democracia no Brasil sempre foi ameaçada e está sendo ameaçada. Só que antes a gente tinha a resistência da multidão que ia às ruas. Agora essa indignação contra os movimentos de extrema-direita se restringe ao universo virtual, onde a extrema-direita “nada de braçada”.

Sim! Agora eu acho que logo, logo a gente vai ter que tomar as ruas de novo. Eu penso nisso, eu acho que não tem outra alternativa.

 

Você assistiu ao filme “Ainda Estou Aqui”?

 

Eu fui assistir ao filme com o meu filho. Eu fiquei preocupada com ele, ele tem 50 anos, né? Eu tenho uma filha também, Camila, mas eu acho que o Paulo foi o mais atingido (Paulo e Camila são filhos de Rita do primeiro casamento). Quando fui presa na ditadura, ele tinha sete anos e minha filha tinha quatro. A responsabilidade era grande, mas era uma culpa também de que eu tinha criado essa situação para mim; conscientemente eu tinha o raciocínio de que eu tinha o direito à resistência, mas no fundo, no fundo, eu me preocupava muito, porque ele teve vários problemas com isso. Ele foi tirado de uma escola e colocado em outra. Quando ele vai para universidade, ele entra num grupo complicadíssimo, ele acaba entrando nas drogas, depois teve todo um trabalho para entender o que estava acontecendo mesmo, se era conjuntural.

Ele a viu na prisão, durante a ditadura?

Eu pedi autorização para que meu filho pudesse me visitar na prisão, no presídio.

 

Mas ele não a viu machucada?

Não, nunca me viu. Nas visitas, uma vez, ele estava chorando muito, e ele me perguntou “se a prisão era perpétua”. Então era uma vulnerabilidade muito grande. Ele foi muito, muito atingido. Quando fomos ver o filme, o Paulo gostou muito; aliás, ele já tinha visto um outro filme que eu tinha pedido para ele ver, Kamchatka, filme argentino. Kamchatka é um jogo que o pai brincava com o filho. É lindo esse filme! Ele conta a história de duas crianças que os pais foram perseguidos, as crianças ficaram com os avós e os pais são mortos. O narrador é o filho que sobreviveu. E a realidade toda que as crianças do filme viveram é muito semelhante à realidade que os meus filhos viveram. Aí eu pedi para o Paulo ir ver esse filme. Eu lembro que quando ele chegou em casa, ele me chamou num canto no sofá, me abraçou e disse: “Fique tranquila que eu agora entendi tudo”. Ele tinha 30 e tantos anos. Veja quanto tempo eu não fui responsabilizada pela vida dele ter mudado e por tudo o que aconteceu, né?

E essa dor ficou para você também?

 

Também, ela ficou para mim, mas é uma dor que é da mãe que perde o filho; das Mães de Maio, aquilo é horrível. Então é uma dor que é coletiva, é minha, eu sinto por elas também, porque eu passei por aquilo. Eu não cheguei a perder meus filhos, mas eu criei situações para eles que foram difíceis. Imagina quem perdeu o filho? Eu tenho uma identificação com essas pessoas todas.

Em relação ao filme Ainda Estou Aqui você assistiu ao lado do seu filho Paulo. Como foi estar ali sentada com ele?

Ele silencioso, ali. Eu, preocupada: “Meu Deus do céu, porque é que eu convidei o Paulo para esse filme? Será que vai reacender nele toda essa dificuldade que ele teve?” Ele teve vários problemas graves. “Será que isso vem à tona outra vez?” E eu lembro quando ele era muito jovenzinho que ele voltou um dia da faculdade, ele teve um surto, levei no médico na hora e o que era? Aquela realidade toda que aconteceu comigo ele transpunha para ele e ele tinha medo daquilo.

Você acha que foi uma cura você assistir com ele ao filme?

Eu acho que foi muito bom, muito bom mesmo aquilo ali na tela. Você vendo a Eunice naquele lugar e você se colocando naquele lugar também. O filme é muito bom. O filme faz a gente entrar na tela. E o que salvou o Paulo, eu acho, foi a música. Ele disse: “Mãe, eu fui muito para a música do filme e eu fiquei na música, e o que aliviou o momento mais difícil foi a música”. E quando ele era pequeno, ele tinha aquela maquininha de filmar. E aquilo ali fez com que ele se identificasse, ele vai fazer toda uma relação com a mãe, com aquela mãe, porque a câmera registra aquele momento, mas ela não tem a fala depois, ele vai fazer uma relação muito interessante disso e vai dizer que durante muito tempo não se podia falar disso e agora ele consegue falar. E ele identifica que no cinema foi um silêncio profundo e o Paulo se identifica com aquele silêncio.

E você, o que sentiu ali sentada, na plateia do cinema, ao lado do seu filho?

Olha, até hoje eu tenho uma reação estranha, nesse momento; eu começo a ter uma agonia, uma agonia horrorosa. Há muito tempo eu não conseguia entender isso. Sempre que eu estava em algum lugar que tinha que esperar, eu começava nessa angústia. E sabe o que era? Eu consegui relacionar, depois, que era o tempo em que eu ficava esperando para voltar para a tortura, entendeu? Quando isso vem, me dá uma sensação de desassossego e de desamparo muito grande. Eu estava junto com meu filho ali no cinema, então foi bom. Se eu estivesse sozinha, eu acho que teria sido pior. Mas eu tinha ali ele junto de mim e me deu força para ficar, para ficar revivendo essa história, a história da Eunice, que era uma mulher fantástica, né?

Ao assistir a Ainda Estou Aqui você se colocou no lugar da Eunice?

Sim, isso, lá dentro daquela cela, inclusive, é muito assemelhado aquele lugar que ela está, aquela janela, só! A cela da Oban também só tinha aquela janela.

“Da Vida Bruta”, do diretor argentino Roberto Fernández, é um documentário sobre a sua militância na ditadura. Como foi ser a protagonista da sua própria história?

Da Vida Bruta foi uma surpresa para mim. Por quê? Porque ele fala do que aconteceu. Não sou só eu que falo no filme. Eu estou contando uma situação, por exemplo, do movimento estudantil, ele mostra o que era o movimento estudantil. Ele consegue falar de todos os ditadores e quem era cada um. Ele consegue falar das músicas daquele tempo. Ele dá para os jovens uma visão do que foi a ditadura civil-militar. Da Vida Bruta começou a ser filmado logo depois da morte do Alípio (Alípio Freire). Eu fui casada com o Alípio durante 45 anos e ele morreu vítima da Covid-19, em 2021. Então, o Alípio tinha acabado de morrer. Eu estava muito, muito arrasada. Então eu começo o filme assim desalentada, triste e depois vai ganhando força quando eu vou falando. Eu acho que esse passado também é a minha grande força, sabe? Eu acho isso. Se não fosse esse passado eu não seria quem eu sou hoje. Eu não teria a dimensão que eu tenho, tanto da política como das pessoas, da compaixão, da generosidade. A prisão foi um tempo muito importante na minha vida, da resistência à tortura e depois do contato com as mulheres na torre (Presídio Tiradentes); de poder fazer a crítica naquele momento, coletivamente, discutindo as nossas organizações políticas, os equívocos, as grandes conquistas que a gente teve, foi muito importante. Eu me fortaleço muito nesse passado. Ele não me deprime no sentido de que ele me dá uma agonia, às vezes; mas ele me faz ir para a frente. Ele, o passado, é que me dá essa condição de estar fazendo as coisas até hoje. De vez em quando as pessoas dizem: “Mas você não aparenta ter a idade que tem.” Agora, conversando com você, eu acho que é por isso, esse enfrentamento constante, esse enfrentamento na vida que deu essa condição de resistência.

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