

''OS MILITARES SÃO CONSERVADORES E SÃO CORPORATIVOS. ELES VIVEM PARA A CORPORAÇÃO, ISOLADOS.''
ROSA MARIA CARDOSO DA CUNHA
Uma mulher de fala forte, séria, corajosa, um “arquivo” da luta nos tribunais contra as arbitrariedades e atrocidades da ditadura militar. Rosa Maria Cardoso da Cunha, hoje uma experiente advogada criminalista, quando tinha pouco mais de 20 anos, fez a defesa da jovem estudante Dilma Rousseff, que sofreu horrores nas mãos dos torturadores. Hoje, aos 78 anos, Rosa conta nesta entrevista os bastidores da busca por justiça diante de um regime autoritário e violento. A advogada é mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo e doutora em Ciência Política, pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro. Rosa foi uma das poucas advogadas que, durante a ditadura, atuaram na defesa das presas e presos políticos; e uma das poucas mulheres que transitavam “livres” pelos corredores dos órgãos de repressão. Os primeiros passos para se tornar uma advogada criminalista foram dados na Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde se graduou em 1969.
Rosa Cardoso você aprendeu a arte da defesa dos direitos humanos com um dos melhores juristas daquela época.
Na Faculdade Nacional de Direito eu conheci professores muito interessantes e importantes na minha vida profissional. Um deles foi Heleno Fragoso, que foi o criminalista mais importante da minha geração, mais que Sobral Pinto que era modelo de advogado, mas jurista e muito especializado em Direito Penal e advogado, foi o Fragoso. Eu assistia às defesas que ele fazia no Superior Tribunal Militar, que funcionava ao lado da Faculdade Nacional, assim como de outros grandes advogados, mas ele realmente era uma figura ímpar e me estimulou muito a estudar Direito Penal e a trabalhar nessa área. No entanto, apesar de ser monitora dele, eu comecei a trabalhar como estagiária, aliás, que na época se chamava solicitadora, num escritório aqui do Rio de Janeiro, que tinha o maior número de casos de presos políticos, de perseguidos políticos, que era do Modesto da Silveira. Isso foi em 1967, aproximadamente; eu não tinha concluído a faculdade, terminei a faculdade em 1969; e lá nós defendíamos um número muito grande de sindicalistas, por isso que era o escritório com o maior número de advogados porque era uma advocacia massiva, no sentido de que 50 pessoas eram julgadas ao mesmo tempo, às vezes, ferroviários, rodoviários e militares, também perseguidos pelo golpe e pela ditadura que se impôs a seguir. E então eu tive uma experiência, nem como auxiliar, já entrei advogando e o que me permitiu fazer isso é que eu assistia muito, convivia muito com essas defesas que eram feitas por outros advogados, toda tarde que o tribunal funcionava eu ia assistir essas defesas ali no Superior Tribunal Militar, que ficava ao lado da Faculdade de Direito. Em 1972, mais ou menos, eu me casei com o advogado paulista e vim morar em São Paulo. Algum tempo depois ele ficou doente e eu passei a atender também os casos dos clientes dele, porque eu me sentia responsável, mas tinha menos mulheres como clientes do que homens, principalmente porque havia muito mais presos políticos do que presas políticas. Destaco aqui, o caso da Amelinha Teles, que foi muito torturada inclusive na frente dos filhos, isso gerou problemas psicológicos muito grandes para ela.
Você também defendeu a Dilma Rousseff?
No caso da Dilma, o que chamava a minha atenção era o sofrimento da Dilma, muito torturada, passou uma época na prisão, ela precisava de remédio, de médicos e até de um atendimento especializado, a questão dos dentes, os torturadores atingiram muito a arcada dentária dela, mas também o sofrimento da mãe dela. Dona Dilma foi uma pessoa incansável, que simboliza para mim aquelas mães que, a despeito de não ter a mesma formação política nem opção política igual à da filha, tinha um afeto transbordante e uma capacidade de ir atrás e de falar com os militares, de reclamar, de exigir. Incansável mesmo.
Dessa convivência, nasceu uma grande amizade?
Eu convivi muito com a dona Dilma e quando ela morava com a Dilma no Palácio, em Brasília, uma vez que eu estive lá, ela pediu que eu fosse visitá-la, entre as muitas coisas que ela me disse, ela me disse: “Rosa, não deixe os homens te explorarem, não. Você está sempre fazendo o trabalho deles.” Eu achei engraçada essa observação dela. Eu nunca tinha pensado nisso.
Rosa, você também sofreu perseguição durante a ditadura? Pergunto isso porque você foi uma das poucas advogadas a enfrentar os militares em defesa dos presos políticos.
Sim, nós sabíamos e éramos seguidas o tempo todo. Nós éramos monitoradas, vigiadas e tinha constantemente um policial seguindo os nossos passos, porque eles queriam ver se nós nos encontrávamos com pessoas clandestinas; se nós tínhamos laços maiores com as organizações que estavam sendo perseguidas. Além desse monitoramento, nós éramos assustadas, ameaçadas. Eu lembro que uma vez eu fui à Ilha das Flores, Rio de Janeiro (centro de tortura) e o comandante que estava lá, ele me chamou lá na sala dele, mostrou o mapa e disse: “Olha, você sabe que nós já liquidamos essas organizações aqui e levantamos os nomes de todos esses, no caso era o VAR-Palmares, e vamos matar ou prender. Você sabe disso. Você entende o que eu estou dizendo?” Ele estava me ameaçando também: “Se você tiver contato com essa gente, cuide da sua segurança porque você estará profundamente insegura.”
Essa ameaça era uma forma de machismo?
Sim, certamente eles me viam como uma pessoa mais frágil, até porque eu era muito jovem.
Quantos anos você tinha?
Ah, eu quando comecei a advogar tinha 20, 21 anos.
Qual era sua idade quando você defendeu a Dilma?
Com 23 anos. Nesse momento só eu que fiz a defesa da Dilma. Mas eu fazia parte de um pequeno grupo de advogados criminalistas que faziam a defesa de presos políticos. Havia advogados criminalistas nessa época, como em todas as épocas, notáveis, mas os que faziam essa advocacia especificamente, era um grupo pequeno, bastante pequeno no Rio de Janeiro e São Paulo, porque era uma advocacia perigosa. Era uma advocacia mal paga, muitas vezes gratuita. As pessoas não tinham condição de pagar, muitos não tinham família por perto que pudesse assumir as despesas. Alguns tinham uma família que morava no interior, num lugar muito afastado, em outro estado, e já era difícil para essa família vir uma vez ou outra visitá-los. Impossível pagar um advogado.
E como vocês sobreviviam?
Muitas vezes vivíamos muito limitadamente, nós, advogados. Não recebíamos dinheiro significativo para uma vida correspondente ao que outros criminalistas, que trabalhavam em crimes comuns e não em crimes políticos, ganhavam naquela época.
Você sentia medo, Rosa? Quando, por exemplo, o comandante a ameaçou?
Naquele momento, lembrando daquele instante, eu não me senti amedrontada, não. Eu achava que eu estava fazendo uma coisa tão importante de defender aquelas pessoas que estavam numa situação de tanta vulnerabilidade, estavam presas, mas nós sabíamos que elas eram o tempo todo chamadas e advertidas, podiam voltar para a tortura. Naquele momento eu não senti não, mas em outros momentos eu senti sim. Eu senti medo e ao mesmo tempo a necessidade de ter coragem. E prevaleceu a necessidade de ter a coragem que a situação exigia.
Causava uma insegurança que você estava sendo vigiada o tempo todo?
Agora, eu achava também que eu não podia desaparecer, porque eu já fazia uma advocacia muito ampla no Superior Tribunal Militar, que é o Tribunal Superior na órbita militar; assim como tem o Superior Tribunal de Justiça, onde as pessoas recorrem, tem o Supremo Tribunal Federal; naquela época, ser julgado em
primeira instância, tinha auditorias e em segunda instância você julgava o habeas corpus, no período em que tem habeas corpus, você julgava no Superior Tribunal Militar. E eu era muito bem quista e muito admirada, no Superior Tribunal Militar, porque eu tinha uma formação técnica muito boa. Como eu disse, eu fui aluna monitora do Heleno Fragoso, eu aprendi muito com ele. Primeiro fazia a defesa técnica, explicava qual era o fato que a gente estava discutindo, qual era o crime que estava sendo imputado, geralmente errados, aí eu explicava que crime era aquele, qual a origem daquele crime em leis de segurança anteriores a que estava vigendo naquele momento. E os militares ficavam surpresos porque os militares da primeira instância pensavam que eu tinha algum tipo de articulação com organizações clandestinas. Eu não tinha. Eu escolhi ser advogada. Eu achava absolutamente inconveniente pertencer a uma organização e ser advogada de organizações. Era um risco para mim e um risco para eles. E ser defendida por uma advogada que pertencesse a uma organização.
Como era sua defesa dos prisioneiros políticos?
Eu sempre fui muito dedicada e que fazia a defesa técnica e depois conversava com eles sobre o que estava acontecendo no país e perguntava: “E se fosse seu neto? Você admitiria que ele fosse torturado? E se fosse seu filho?
Como nosso foco são as mulheres, muitas delas viviam num limbo, presas e torturadas sistematicamente, mas oficialmente elas não estavam em lugar nenhum. A família, os parentes, amigos, não sabiam o paradeiro dessas sequestradas políticas.
Sim, era um momento de muita indecisão, de muita solidão, porque elas ficavam isoladas. Eram momentos de muito sofrimento e de muita tortura física e psicológica. Porque as duas se alternam, se misturam, geram uma carga muito pesada de sofrimento. Eu não tinha o que fazer, porque muitas vezes nem sabíamos que aquela pessoa estava presa. Era aos poucos, era quando inclusive outras pessoas presas notavam que tinha uma pessoa que estava sendo escondida ali numa solitária, uma pessoa que estava sendo torturada de forma cotidiana, como acontecia no começo das prisões. As pessoas eram presas, eram torturadas desde o primeiro momento e voltavam às salas de tortura para terminar de dizer o que não haviam contado num primeiro momento. Os torturadores confrontavam depoimentos de outros presos. A ditadura teve fases diferentes, assim como se entrava numa fase de muita repressão, essa fase podia daqui a pouco mudar. A lei mudava também. Tiveram leis muito pesadas, muito gravosas. Depois essa repressão começa a diminuir, inclusive porque há um movimento de rua, e não só de rua contra a ditadura, mas há um movimento parlamentar. Com o Ernesto Geisel (1974 – 1979) já começa a ter uma certa abertura, a despeito de no governo Geisel haver se assassinado, deliberadamente, um conjunto de pessoas do Partido Comunista, para que se começasse uma abertura sem aquelas pessoas que eram consideradas pessoas que tinham muita influência sobre outras, então foram assassinadas. Foram umas seis ou sete, inclusive algumas passaram pela Casa da Morte (centro clandestino de torturas e assassinatos), em Petrópolis, Rio de Janeiro. Os corpos foram esquartejados e levados para uma usina que havia em Campos, onde eles foram incinerados.
No tribunal, quando você fazia a defesa de suas clientes, você sentia machismo?
Eu sentia o machismo na forma de cavalheirismo, sabe? No sentido de falar de que nós éramos frágeis. Ou então: “O que você está fazendo aqui, porque você seria mais necessária se estivesse numa outra profissão ou cuidando dos filhos. O que uma menina inteligente como você vem fazer aqui nesse submundo?” Esse tipo de machismo, né?
E com as presas, você sentia o machismo contra elas?
Especialmente nesse momento, não havia uma exposição tão clara de machismo. Havia sim na hora da prisão, nos depoimentos, na tortura, nos interrogatórios, o tempo todo, elas foram muito humilhadas, elas foram muito ofendidas: “Suas vacas, suas putas, vocês estão aqui por quê? Que escolha é essa? Que tipo de escolha essa? Vocês são degeneradas. Vocês não têm nenhum interesse na família, na sua família? Vocês devem ter deixado seus pais desesperados.” Então, aí havia muito machismo, muito machismo. Era o momento que eles podiam explicitar isso com mais liberdade.
Tanto a mulher, quanto o homem, presos políticos, geralmente eram violentados sexualmente. Mas por que parece ser pior para as mulheres?
Eu acho que a violência sexual contra a mulher a desqualifica no mundo em que nós vivemos, sabe? Desqualifica. É uma mulher que foi abusada, é uma mulher que não é uma mulher para depois disso, por exemplo, casar-se ou permanecer no casamento, vivendo da mesma forma que vivia antes. Enquanto um homem abusado, empalado, não provoca esse tipo de sentimento nas mulheres, é visto até como um herói. Isso não inibe a sexualidade da mulher, mas pode inibir no mundo machista, como nós somos, a sexualidade do homem. Tanto que numerosas mulheres que foram abusadas, que foram estupradas, durante a prisão, não contam isso ao marido, não contam à família, não contam aos filhos pois se sentem diminuídas nesse sentido. Um homem mais facilmente vai contar. A diferença da violência sexual do homem da mulher, é que no caso da mulher tem o componente da desqualificação moral, ela era violentada pelo que ela era.
E dentro da resistência existia esse componente machista em relação às mulheres violentadas na tortura?
E eu acho que existe, também, uma coisa contrária. A Inês Etienne Romeu, presa política foi estuprada por um policial chamado Camarão. Durante quase cem dias de cárcere na Casa da Morte, ela sofreu estupros cotidianos, a toda hora. Inês foi tão torturada que tentou se matar por três vezes. Depois de tudo que passou, a Inês se casou com um preso político, na prisão. Ele quis mostrar a todos que não sentia rejeição alguma, não tinha preconceito e que as “companheiras” de luta mereciam respeito. Eu acho que ela a via como heroína.
Rosa, você foi convidada pela presidenta Dilma Rousseff para participar da Comissão Nacional da Verdade, instituída em 2012. Você acredita que foi feito justiça?
A Comissão da Verdade não era exatamente para fazer justiça, não era uma forma de se vingar, embora tenha um componente disso, porque quando acontece qualquer coisa de trágica, dramática, violenta, uma pessoa da nossa família, a primeira coisa que eu quero é que haja justiça. O que significa quando um familiar diz: “Quero justiça, quero que ele seja julgado; eu quero que ele seja punido; eu quero que não haja impunidade. Eu não admito impunidade. Meu sofrimento já foi muito grande, mas se houver impunidade vai ser sem fim.” Nesse sentido, não houve justiça porque o que as vítimas esperavam, sobretudo, eu acho, é que a Comissão da Verdade fosse uma antessala para a judicialização dos casos. A judicialização dos agentes públicos que praticaram crimes de lesa humanidade ou graves violações de direitos humanos. As graves violações são a tortura, o sequestro, a ocultação do cadáver, formas de tortura variadas. Enfim, esses são crimes que são graves violações de direitos humanos e ao mesmo tempo crimes de lesa humanidade. Quem disse que eram também crimes de lesa humanidade foi a Corte Regional de Direitos Humanos que se baseia na Convenção de São José da Costa Rica, a convenção americana. Porque no sistema de Direito Internacional dos Direitos Humanos você tem a ONU, você tem a Declaração Universal de Direitos Humanos, mas vai tendo outras declarações regionais que se sucedem. Você vai ter uma convenção africana, você vai ter uma convenção da América Latina, que é para onde a gente levou o caso do Herzog; do caso dos guerrilheiros. E essa convenção para onde se levou o caso dos guerrilheiros do Araguaia, foi essa convenção que disse na sua sentença sobre o caso que havia ali várias graves violações de direitos humanos, que eram ao mesmo tempo crimes contra a humanidade. Então, quando terminou o tempo de funcionamento da Comissão da Verdade, foram dois anos, nós fizemos um relatório. Foram 49 recomendações, 29 recomendações gerais e depois tinha 13 recomendações sobre os povos indígenas e sete recomendações para as questões dos homossexuais. Das 29 gerais, muitas recomendações eram dos movimentos sociais como, por exemplo, dar tratamento digno aos presos; sobre o comportamento adequado das polícias. Porém, tinha seis recomendações que
eram para as Forças Armadas. A primeira delas era que os militares reconhecessem institucionalmente que eles foram autores do golpe e da ditadura. A segunda recomendação, que era a mais importante, é que não se aplicasse aos militares que praticaram crimes os dispositivos da lei que se referem à anistia, que eles não tivessem anistia.
A Lei da Anistia de 1979, sancionada pelo presidente João Baptista Figueiredo?
É porque os militares, naquela época, conseguiram ser anistiados por seus crimes de lesa humanidade.
Foram colocados no mesmo lado da balança torturadores e torturados?
Exatamente! Nesse sentido, a Comissão da Verdade não atingiu os seus objetivos. Das 49 recomendações da Comissão da Verdade, só duas foram cumpridas: a Lei de Segurança fosse reformada e a ser integrada por artigos que entraram no Código Penal. E se introduziu, também, uma coisa que era pedida, que houvesse audiência de custódia, ou seja, quando a pessoa é presa que ela seja apresentada ao juiz, em 48 horas, para que o juiz veja se ela foi torturada ou não. Isso antes não existia.
Nas Forças Armadas, a maioria de seus membros, diz que durante a ditadura agiram, ou seja, torturaram, para evitar salvar o Brasil do comunismo?
Eles acham, mas eles não dizem. O comportamento típico das Forças Armadas, quem encarnou, quem foi o padrão desse comportamento foi o coronel Ustra (Carlos Alberto Brilhante Ustra), que era antes major. Ustra dizia: “Nós não fizemos nada, nós nos defendemos. Nós impedimos que um conjunto de terroristas transformassem a democracia em comunismo. Nós defendemos o país. Nós salvamos o país do comunismo.” O Ustra dizia que eles nunca torturaram. As Forças Armadas mantêm isso como comportamento padrão. “Nós não torturamos.”
O coronel Ustra, ídolo da família Bolsonaro, foi o único condenado oficialmente?
Ele não foi condenado a pena, a punição. Ele foi alvo de uma ação declaratória da família Teles, que pediu que a Justiça declarasse que ele era torturador, já que não podiam julgá-lo, o julgamento não está permitido no Brasil, mas que podiam declarar que ele torturou, e ele foi declarado torturador.
Ele torturou a Amelinha Teles e o marido dela, César?
Exatamente!
Rosa como não foi feito o acerto de contas como deveria, ou seja, torturador tem que ser julgado e condenado pelas barbaridades cometidas durante a ditadura, é por isso que as Forças Armadas, os militares, continuam a nos assombrar?
Ela nos assombra e ela os assombra, eles têm muito medo de serem punidos e serem declarados pela justiça de assassinos que praticaram os crimes de lesa humanidade. Mas vamos ser bem honestos, a Argentina julgou tudo e agora tem um presidente como o Milei (Javier Milei). Então a gente tem que proclamar que isso nunca mais aconteça, repetir, enfatizar. Mas isso não significa que não acontecerá, porque após o holocausto, na Alemanha, ainda tem partido neonazista.
E no Brasil algo que está acontecendo é esse movimento da extrema-direita que quer comparar os golpistas do dia 8 de janeiro de 2023, que pediam a volta dos militares ao poder, com os homens e mulheres que lutaram contra a ditadura de 1964 a 1985 e que cassou os direitos civis da sociedade. Você acha que é por ignorância ou eles sabem exatamente o que pedem?
Claro que eles entendem. Eles sabem que as ações são diferentes. Claro que eles sabem que eles são de extrema-direita. É claro que o Bolsonaro sabe que ele quer matar os adversários. O Bolsonaro assumiu dizendo que era a favor da tortura e que o problema do Brasil “É que matamos pouco, nós devíamos ter matado 30 mil pessoas. Nós temos que metralhar os petralhas, as pessoas do PT.” A democracia só pode haver aqui se o exército quiser, ele falou isso para os fuzileiros navais. Desde o começo ele falou que queria organizar uma sociedade mobilizada e armada para defender a liberdade e a liberdade deles não é a liberdade que a gente considera liberdade. E os seus “discípulos” sabem que estão seguindo uma filosofia de extrema-direita, eles sabem.
Na sua avaliação, o fato da Comissão Nacional da Verdade, instituída pela Dilma, foi um dos motivos do impeachment dela? Ela arranjou um problema grande com os militares?
Eu acho que isso pesa como um dos motivos, é um pequeno motivo, mas eu acho que é o impeachment da Dilma foi para refundar a Nova República. Os militares não estavam satisfeitos. Nem os militares nem os banqueiros estavam satisfeitos com os rumos que a Nova República havia tomado no Brasil. A Nova República estava se tornando, nos moldes da Constituição de 88, uma democracia plural, identitária, com direitos humanos. Não era isso que eles queriam. Tanto que os militares fizeram lobby na Constituição para mudar o artigo que os coloca como moderadores, como tutores nos governos civis; e depois eles ficam estudando e conspirando dentro dos quartéis, ressuscitam aquela teoria da extrema-direita da existência do marxismo cultural (cujo objetivo seria converter, a partir de valores culturais, a sociedade em um modelo comunista), mediante os quais todas essas instituições que nós achamos democráticas, eles acham que são formas de se instalar o comunismo. E quando eles puseram o Temer, lá, (Michel Temer), eles articularam com o Temer para tirar a Dilma. Não era somente porque ela tinha permitido a Comissão da Verdade, eles teriam outra forma de lutar contra isso, não seguir as recomendações. E tinha que mudar também economicamente. Tanto que logo que a Dilma saiu, entra o Temer, o Temer faz a lei do teto dos gastos, para diminuir as verbas para educação e saúde. A ideia era construir não o regime democrático, mas institucionalizar um regime autoritário e com os pobres, os negros lá embaixo, conhecendo o seu lugar. Então os programas sociais seriam todos massacrados. Os direitos trabalhistas foram arrasados com a reforma do Temer; a terceirização foi permitida, foi liberada em larga escala; terceirizar todo o serviço; “uberizaram” a sociedade em termos de trabalho; criaram jornadas intermitentes, sem garantias nenhuma para o povo trabalhador. Enfim, a reforma trabalhista foi muito dura, foi muito supressora de direitos. Isso mudou a natureza do capitalismo que estava se construindo aqui. Agora, para construir e para redirecionar isso de novo, é uma luta, é uma luta. Nós regredimos muito.
No governo de Jair Bolsonaro, as várias comissões da Comissão Nacional da Verdade, foram desmobilizadas?
Ele destruiu as comissões existentes. Era a Comissão dos Mortos e Desaparecidos; a Comissão de Anistia, aonde a vítima ia lá, se apresentava e pedia reparação. Ele destruiu essas comissões. No caso da Comissão da Verdade, era uma comissão temporária, mas as recomendações não foram seguidas. Somente, como já disse, duas: a Audiência de Custódia e a Lei de Segurança Nacional. Imagina se eles (presos do 8 de janeiro de 2023) estivessem sendo julgados pela Lei de Segurança Nacional que eles quiseram para os adversários?
Eles não teriam essas penas de 17 anos?
Seria de 30 anos.
No governo Lula as comissões foram retomadas?
Foi retomada a Comissão de Anistia que é uma comissão que faz reparação de danos sofridos pelas pessoas, de prejuízos de emprego, de trabalho. E a Comissão dos Mortos e Desaparecidos que ainda busca localizar os corpos de muitos mortos. Os que se sabe que desapareceram, porque desapareceram, na época do golpe e da ditadura, a população do campo, mais de duas mil, três mil pessoas desapareceram. As populações indígenas, que são populações brasileiras, aliás, os primeiros brasileiros, são milhões que foram mortos; mas mortos não só abrindo as estradas, passando pelas aldeias; mortes com napalm (bombas incendiárias). Inclusive, saiu um livro agora sobre a Petrobras (Petrobras e petroleiros na ditadura – trabalho, repressão e resistência), conta como é que as empresas destruíram a vida de milhares de pessoas.
Quando a justiça não é feita a democracia está sempre numa corda bamba?
Com certeza. A questão da impunidade, punir não garante que você vai ter para sempre uma sociedade democrática. Você tem que continuar cada dia educando as pessoas para quererem a democracia, a solidariedade, mas ajuda bastante.
A sociedade está desmobilizada?
Eu acho que está desmobilizada e desorientada, desorientada. A desinformação é muito grande, fake news, a mentira. É a questão do dia é que está em pauta já há alguns anos, desde 1916, uma coisa assim, que a palavra mais evocada no mundo da política era pós-verdade, fake news.
A nossa república ela começa, em 1889, com a proclamação feita pelos militares. Poderíamos dizer que os militares estão sempre fungando no cangote da democracia?
Olha, os militares são conservadores e são corporativos. É isso que você está dizendo. Eles vivem para a corporação, isolados e são conservadores. Eles não procuram saber o que está acontecendo, em termos de democracia na sociedade, em termos de pluralismo, em termos de identidades novas que estão aparecendo. E eles não querem saber disso. Para eles são manifestações do comunismo.
Eles acreditam mesmo nesse perigo do comunismo se instalar no Brasil?
O pior é que eles acreditam mesmo, sabe? Eles acreditam que são novas roupagens do comunismo. Que são roupagens de um socialismo que hoje se expõe na sociedade com essas reivindicações que a gente chama de democráticas e eles não chamam.
Você tem esperança, Rosa?
Tenho, tenho, porque é uma coisa que quando a gente não tem, a gente tem que criar. Quando a gente está meio indecisa sobre a esperança, a gente tem que levantar essa bandeira outra vez. Impossível viver sem esperança de um mundo melhor. Não vale a pena viver.
A sua esperança se traduz como?
Pensando que o mundo, apesar das guerras, de tudo, criou muitas coisas importantes, melhorou a vida de muita gente. Se você olha das formas primitivas de vida até as formas contemporâneas, nós vivemos melhor agora. Nós nos tornamos, de qualquer forma, mais saudáveis. Tanto que as pessoas morriam
com 30 anos, hoje nós temos um tempo de vida muito maior, com mais possibilidade de curar doenças. Nós progredimos, mas hoje a gente tem mais consciência dos buracos que nós temos na civilização e as brutalidades, das atrocidades que convivem com o nosso bem-estar.
Você acredita que o Lula termina o governo dele?
Ah, eu acho que chega sim.
Aos trancos e barrancos, mas chega?
É, é estar caminhando no abraço que dificulta o passo, né, no abraço de muita gente, né? Uns caminhando mais fracos, outros se arrastando, uns com muleta. É a frente ampla, mas caminhando. De qualquer forma encontramos uma saída, hein? Encontramos uma saída.
