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''ERA UMA TORRE CENTENÁRIA, DE 1852, QUE ESTAVA ENCRAVADA ALI NO PRESÍDIO. ENTRE 1969 E 1973 PELO MENOS 132 MULHERES PASSARAM PELA TORRE.''
 

LUIZA VILLAMÉA

Luiza Villaméa, jornalista e escritora, tem o jeito peculiar do mineiro de conversar: fala mansa, pausas para respirar, às vezes o olhar se perde num silêncio e depois retoma a delicadeza com as palavras que usa para contar sua história e de outas pessoas. Luiza é também uma jornalista que pesquisa, e muito. Um dos muitos temas sobre os quais escreve e escreveu é o espinhoso período da ditadura militar (1964 – 1985), assunto tabu para milhares de brasileiros que não acreditam que houve os anos de chumbo. Luíza trabalhou nos jornais O Globo, nas revistas Veja, IstoÉ e Brasileiros. Para esta última revista, fez a série de reportagens Filhos do Brasil, sobre o impacto da ditadura na vida de crianças e adolescentes. Ganhou, por esse trabalho, o Prêmio Esso de 2013; e conquistou outros prêmios. Em 2023, recebeu o Prêmio Especial Liberdade, na 40ª edição do Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo, promovido pelo Movimento de Justiça e Direitos Humanos e pela OAB-RS. Este ano conquistou um prêmio Jabuti na 1ª edição do Prêmio Jabuti Acadêmico, promovido pela Câmara Brasileira do Livro e recebeu um Prêmio Vladimir Herzog no 46º Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos. Esses últimos prêmios são pelo livro A Torre – O cotidiano de mulheres encarceradas pela ditadura, publicado no ano passado. E é, principalmente, sobre A Torre a nossa entrevista com Luíza Villaméa.

 

Luiza, eu gostaria que você falasse sobre você.

Eu sou jornalista e sou mestre em história pela USP e no decorrer da minha carreira eu sempre procurei fazer reportagens vinculadas à história recente do Brasil e a direitos humanos. Não que eu fizesse isso o tempo todo. Quem é jornalista sabe como que é cavar espaço; eu sempre trabalhei em grandes veículos de imprensa. Então, por exemplo, quando você está numa editoria de política, você tinha que cobrir o dia a dia da política ou de assunto nacional e, paralelamente a isso, você fazia suas matérias especiais. E chegou uma época em que eu também virei repórter especial. Na verdade, para isso, eu primeiro precisei virar editora, porque senão você não aumenta salário, de jeito nenhum, e aí eu consegui fazer mais. Mas eu sempre fiz matérias ligadas a direitos humanos e a história do Brasil e coincidiu que quando eu comecei a trabalhar, logo nos primeiros anos, eu trabalhava na sucursal do Globo aqui em São Paulo, que era uma sucursal superbacana, tinha 35 jornalistas, para você ter uma ideia. E coincidiu que nesse período o arquivo do Deops (Departamento Estadual de Ordem Política e Social) , que estava trancafiado no sétimo andar do prédio da Polícia Federal, no centro da cidade, todo esse arquivo ocupava esse andar que ninguém nem tinha acesso, que quem levou para lá foi o Romeu Tuma, que era do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), quando ele vai para a Polícia Federal, ele leva esse arquivo e posteriormente, no governo Mário Covas, esse arquivo é devolvido ao Estado como de fato precisaria ser. E demorou o tempo para a gente ainda ter acesso a esse arquivo. Na verdade, demoraram alguns anos,

mas eu fui uma das pessoas que entraram nessa sala, numa espécie de coletiva que teve de apresentação; a gente podia entrar e ficar 15 minutos cada um para ver, mas não dava para você pesquisar nada. Se ainda hoje a gente sabe só de nomes de pessoas fichadas são mais de um milhão e meio, imagina esse material todo trancado lá nessa sala; e aí demorou alguns anos, na verdade, para a gente ter acesso a esse material, mas assim que teve eu comecei a fazer matérias. Primeiro quem teve acesso foram as famílias e eu comecei a pesquisar muito lá. E então coincidiu com o fato de eu já gostar de fazer matérias relativas à história recente e, principalmente, do período da ditadura, com esse episódio. Não foi só o arquivo aqui do Estado de São Paulo, outros arquivos também começaram a ser disponibilizados, a ser permitida a consulta pública.

Antes de a gente falar do livro A Torre, eu gostaria de saber se você assistiu ao filme A Torre das Donzelas, da Susanna Lira?

Sim, eu assisti.

Mas você já havia pesquisado sobre o encarceramento de prisioneiras políticas na torre do Presídio de Tiradentes, que ficavam na torre?

É, eu inclusive estava no meio do livro quando eu soube que a Susanna ia gravar. Ela reuniu várias prisioneiras e eu cheguei a parar um pouco meu trabalho, não foi parar totalmente, porque esse trabalho foi feito a maior parte do tempo paralelamente com o meu dia a dia de jornalista. Isso significa o quê? É sacrificar muito também, feriado, final de semana, enfim. Mas aí, quando teve a estreia do filme, eu tive dois movimentos na hora que eu saí do filme: uma foi falar “eu retomo hoje mesmo o meu trabalho”, porque era um outro jeito, era um outro trabalho. E o outro movimento foi tentar apagar toda memória do filme para não ficar sugestionada por algo. Igual Memórias do Cárcere, que eu tive vontade de reler num determinado momento eu falei “não, não vou”. Uma que você pode, entre aspas, ficar muito influenciada. E outra que, no caso de Memórias do Cárcere eu corria o risco de jogar a toalha, porque o livro é tão fabuloso. Então teve esse movimento.

Mas não tem como a gente não absorver um pouco de tudo que lemos e vemos na hora de escrever um livro.

É, claro, mas quando você está no meio de um trabalho você deve tomar mais cuidado, de onde estão vindo as influências. E aí nesse processo todo, para mim ficou muito claro que o mesmo tema várias pessoas podem fazer em diferentes linguagens ou até mesmo na mesma linguagem. Pense bem quantos livros já foram feitos sobre Getúlio Vargas? E cada vez que fazem um livro legal, aparecem novidades e um ângulo diferente que revive a memória dele.

Em 2013, você ganhou o Prêmio Esso com a série “Filhos do Brasil”. Essa série a direcionou para depois você escrever A Torre?

Essa série e todos os trabalhos que eu fiz anteriormente de uma certa maneira culminaram nesse livro, porque fragmentos dessa história, da torre, eu vim pegando nas conversas, alguém fazia uma referência, então eu sabia que existia, que várias pessoas ficaram presas lá, mas para falar a verdade, o dia que eu resolvi mesmo fazer o livro, foi uma outra situação. Eu moro em Pinheiros e eu frequento a Atlética da Medicina da USP e num domingo de sol, sol forte; eu gosto de nadar, gosto de caminhar; eu estava saindo e encontrei um advogado chamado Wellington Cantal e na hora eu comentei com ele: “Ah, que pena que a Cida (Maria Aparecida Costa) chega tão tarde, eu gosto tanto de falar com ela”. E ele falou: “Você sabe, né Luiza, ela puxou cana muito tempo, então quando ela tem oportunidade ela vira a noite e dorme até tarde no outro dia”. E nesse momento da vida dela, ela era procuradora do Estado de São Paulo, ela também era advogada. Eu sabia da história dela, mas naquela hora me deu um clique que eu já sabia, que várias ficaram presas, eu falei: “Gente, se tantos anos depois o período de cadeia está influenciando o comportamento de uma pessoa, é que é aquele período foi muito marcante”. E aí que eu comecei a pesquisar de fato. E aí eu comecei a trabalhar A Torre.

E sobre a série Filhos do Brasil?

Com relação à série, em 2014, seriam os 50 anos do golpe, e eu trabalhava numa revista muito legal, era repórter especial da Brasileiros, que era uma revista que eu podia escrever um monte, ocupar um monte de páginas e dirigido por um homem muito interessante, o publisher era o Hélio Campos Mello, e eu propus para ele trabalhar o impacto da ditadura na vida de crianças. Depois, no decorrer da apuração, surgiu o adolescente também. Por quê? Porque nos últimos anos, quando os arquivos vieram a público, quando se começou a publicar mais matérias e livros sobre essa temática relativa à ditadura, num primeiro momento qual era grande preocupação? Eram os desaparecidos, era buscar informações dos desaparecidos; depois os adultos; tortura; porque eram tantas nuances que teve que se pesquisando, digamos, por etapas ou ângulos diferentes. Então eu achei que estava faltando era um trabalho relativo às crianças, o impacto na vida das crianças. Mas isso também porque eu sabia de alguns casos. Tanto que eu me lembro direitinho quando eu tive essa ideia, eu me sentei num balcão que tem lá na cozinha, entre a cozinha e a minha sala, e eu já fui fazendo uma lista das pessoas que, hoje adultas, que foram muito impactadas. Mas eu acho que eu pulei uma etapa, importante, não foi uma ideia que caiu do céu. No arquivo do Estado eu encontrei uma foto de um menino que tinha dois anos e três meses e ele estava fichado como terrorista. Entendeu? Ele estava fichado como terrorista e aí eu fui atrás da história; era ele, mais três primos; eles foram banidos do Brasil e eu os encontrei 40 anos depois. São os netos da Tercina (Tercina Dias do Nascimento). E quando eu comecei a pensar sobre isso eu vi que existia um montão (de crianças). Eu tive que fazer seleção, porque como eram matérias muito grandes, o acordo era de publicar um mês sim, outro não.

Deve ter sido muito difícil falar com eles sobre o que passaram?

É muito difícil. A maior parte das pessoas não quer ficar revisitando esse passado difícil.

 

E muitas crianças foram levadas para assistir à tortura dos pais?

É, é uma situação que é inimaginável.

Luiza, vamos falar agora sobre seu livro A Torre.

O título do livro se chama A Torre porque era uma torre mesmo. Era uma torre centenária, de 1852, que estava encravada ali no presídio. Entre 1969 e 1973, quando ela foi esvaziada para ser demolida, para dar espaço para construção do metrô na linha Norte-Sul, pelo menos 132 mulheres passaram pela torre. Eu cheguei a esse número nas pesquisas, porque ninguém nem tinha ideia de que era esse número. Recentemente participei de uma roda de conversa no Paraná e tinham duas mulheres que ficaram presas na torre, e que moram em Curitiba. E elas insistiram muito comigo que as mulheres não tinham ideia do que era a torre: “Nós viemos a ter ideia do que era a torre com o livro”. Por quê? Porque foi isso que pegou para mim no começo. Quando eu comecei a fazer as entrevistas, eu entrevistava uma pessoa, ela contava uma situação; eu entrevistava uma outra pessoa, era uma situação completamente diferente. E eu custei para fazer o fio condutor e é isso que ninguém tinha noção. Por quê? Porque ninguém ficou do começo ao fim, ninguém tinha a história da torre na cabeça. A primeira mulher que foi levada para lá, a Dulce Maia, foi também a primeira mulher a ser presa no Brasil por vínculo direto com a luta armada. A Dulce chegou a encontrar com a madre Maurina (Maurina Borges da Silveira), lá na torre. A Dulce era uma produtora cultural, uma pessoa muito conhecida. A Dulce é presa em janeiro de 69 e não existia ainda nem Oban (Operação Bandeirante– órgão repressor que começou a operar em julho de 1969). Ela é torturada e presa primeiro num quartel aqui no Ibirapuera, São Paulo, e aí que eles percebem que não podem ter presos ali dentro do quartel e que tem a ideia de fazer a Operação Bandeirante. Ela chega na Torre em maio e ela absolutamente sozinha, e até novembro ela é a única “moradora” da torre. No dia 4 de novembro, o delegado Fleury (Sérgio Fernando Paranhos Fleury) estava preparando a emboscada que culminaria no assassinato do Marighella (Carlos Marighella), à noite. Então que que ele fez? Ele mandou esvaziar as celas do DOPS. Nessa altura, em novembro de 69, já tinha muita gente presa. Não era a mesma situação de quando a Dulce foi presa. E aí, eles levaram para a torre 13 mulheres. As 13 mulheres que estavam no DOPS foram para a torre. Entre elas, a Cidinha (Maria Aparecida dos Santos). Mas elas quando saem do DOPS, claro que elas não fazem ideia para onde que elas vão. A Cidinha conta como que um dos investigadores do Fleury passa batendo nas grades e falando “arruma suas tralhas, vocês vão ser transferidas”. Elas entraram no micro-ônibus e andaram muito pouco, porque é muito é muito perto o DOPS de onde era o Presídio Tiradentes. E nesse momento é uma situação muito complicada, porque

elas ficam muito trancadas, elas não têm acesso a nada, nem a advogado, muito menos a visita.

 

Nesse momento a prisão delas já era, digamos, legal? Elas existiam como presas políticas?

Aí elas já existiam. Quando passa pelo DOPS, quando chega no DOPS, elas usam o termo de “fazer cartório”, é que registra o nome da pessoa. Podia não ter inquérito, nada formalizado, mas elas já existiam porque fazia esse registro. E aí até que um dia começam a entregar objetos, alimentos que as famílias e os amigos estavam deixando na portaria, E alguém, que ninguém lembra quem é, eu também não consegui descobrir, alguém teve a brilhante ideia de deixar um manual da Força Aérea Canadense. Era um manual que estava muito na moda naquela época. Esse pessoal dessa geração, muitas vezes eu converso com essas pessoas que não têm nada a ver com a militância, nem com o presídio, e elas falam “eu usei, eu fiz esses exercícios”, eu achei inclusive num sebo o manual. É um manual para você fazer exercício de treinamento, você ficar bem fisicamente num lugar fechado, sem sair do lugar; os exercícios são até difíceis. Enfim, aquilo fez muito bem para elas, não só por causa da questão física, mas principalmente para manter o moral elevado, e coincide que logo em seguida começa uma série de mudanças, começa a ter acesso a banho de sol, depois advogado e aos poucos começam a vir outras pessoas e aos poucos elas vão conquistando a confiança de algumas das carcereiras e conseguem circular dentro da torre durante o dia, porque a arquitetura da torre ajudou muito na organização dessas mulheres.

Como era a arquitetura da torre?

Existiam duas celas embaixo, quatro em cima e uma escadaria monumental unindo os dois pavimentos. Então existia um espaço grande ali naquele miolo e elas mudaram aquilo. Claro, não ficou uma maravilha, mas pelo menos tirar o casco, a sujeira grossa e a partir disso elas começam a se organizar ali dentro, até que chega o momento em que as novas presas que chegam já está tudo organizado, as pessoas estão fazendo trabalhos manuais para vender e tem visitas. Mas foi todo um processo. Eu só cheguei aos 132 nomes porque eu também ia achando nomes e documentos e por conta da data eu perguntava, confirmava com alguém que eu sabia que estivesse ali naquela data.

Você ouviu as 132 mulheres?

Não, eu não ouvi as 132, várias já tinham morrido. Todas que eu consegui localizar e que topavam falar, eu entrevistei, às vezes mais de uma vez. E teve gente que eu não entrevistei diretamente, eu pesquisei o material, entrevistei familiar. É o caso, por exemplo, da Zizinha (Gerosina Silva Pereira); a Robêni (Robêni Baptista da Costa) fazia dupla com ela na cozinha. A Zizinha era uma costureira, muito interessante. Ela era ligada à VPR (Vanguarda Popular Revolucionária). E ela tem uma história fabulosa.

Você não a entrevistou?

Não, porque ela morreu na década de 70. O sonho dela era ter a família toda reunida e nisso o marido já estava no Chile e eles acabaram indo para a Suécia, onde ela até organizou uma espécie de comitê pela democracia no Brasil. Ela era uma mulher que não tinha uma cultura, uma formação tradicional, mas era uma pessoa muito habilidosa. E no museu da universidade, de Lund, ela trabalhava na restauração de peças do século XIII ao século XVIII, porque ela sabia fiar, ela sabia tingir e ela sabia costurar. Todo mundo ali, na torre, tinha uma história muito interessante. Então, há como, Angélica, a gente recuperar essas histórias, porque ela morre lá, ela tem câncer; mas dá para você recuperar com documentos, porque eu li vários documentos sobre ela que estavam nos arquivos, nos processos que eu pesquisei muito, no Superior Tribunal Militar, em Brasília, e com a família.

É um trauma tão grande que essas mulheres viveram durante a ditadura militar que muitas não contaram nem aos seus familiares.

É, isso aconteceu também com algumas personagens. Tem uma especificamente que quando terminou a entrevista, era uma mulher que nunca tinha falado, ela falou assim, “agora eu tenho que conversar com meus filhos”, sendo que o mais velho dela tinha 40 anos.

 

A história das mulheres torturadas pela repressão da ditadura militar, geralmente é contada pelos homens. É importante que elas contem suas histórias, do ponto de vista delas?

Agora, eu não posso reclamar dos homens, muitos homens me ajudaram nesse processo. Porque eles davam a visão do outro lado, de como que era a estrutura lá dentro, sabe?

 

Geralmente você ouve mais a visão do homem. É importante a versão delas, pois a maioria delas está na casa dos 80 anos e a gente precisa ter esse registro.

É, mesmo entre as que eu entrevistei, muita gente já morreu.

Não há fotos internas da torre, é um exercício de imaginação.

Se você lê o livro com atenção, você pode ir desenhando porque tudo que está ali é absolutamente verdade, foi checado, foi super difícil porque não é todo mundo que tem a visão de “olha, tal cela fica do lado direito e tinha tantos metros quadrados; tal cela era maior, tinha 80 metros quadrados”. Mas para você ter uma ideia do nível de apuração que eu fiz, teve um momento que tinha essa cela de 80 metros quadrados lá em cima, que aliás, onde ficou a madre Maurina, a Cidinha e as outras 12 estavam numa cela bem menor; e a Dulce estava nessa grande e não sei por que colocaram a madre nessa aí. Mais para frente, nessa cela ficava maior quantidade de pessoas até pelo tamanho. E se criou uma comunicação entre uma cela do pavilhão masculino; a cela 16 do pavilhão 13, dava parede com um lado do celão. Então o que eles fizeram? As paredes eram grossas e, com agulha de crochê, eles fizeram um caminho pelo qual vários documentos passavam de um lado para o outro. Não era algo muito largo, mas dava para você enrolar bem uma folha de papel ofício e passar direitinho. Então no livro você vai ver que eu falo que as meninas quando elas usavam isso, e para não ficar aquele buraquinho ali na parede, elas misturavam pó de café com pasta de dente e manchavam ali naquele local para ficar da cor esquisita da parede. Do lado dos meninos não tinha jeito de fazer isso porque a parede era com azulejo. Mas como eles tinham começado a fazer o buraco na intersecção, eles providenciaram uma espécie de tampão. Nos anos 70 o tampão, como a gente conhece, não existia ainda no Brasil, mas é igualzinho o tampão. Por quê? Porque a polícia militar, quando ia fazer vistoria, eles batiam nas paredes, e nesse bater, mesmo um “tuneizinho” minúsculo ia mostrar que tinha algo oco ali. Então eles punham esse tampão, tinha um preguinho na ponta que dava para puxar e punham um pouquinho de gesso. No livro eu escrevo que esse tampão tinha dois centímetros de diâmetro por sete centímetros de comprimento. Mas a pessoa pode pensar assim “pô, ela, inventou, é uma licença poética”. Não é uma licença poética.

Nossa, tinha que escrever bem pequenininho, né?

Isso, o tampão era para colocar na beiradinha e empurrar no buraco. Dava para passar uma folha de papel ofício bem enrolada, sabe? E eu soube por uma pessoa que eu conheço, que também ficou preso lá no Presídio de Tiradentes, ele já morreu, e ele falou: “Luiza, o Reinaldo Murano (psicanalista e ex-preso político) tem o tampão, quando a gente saiu de lá ele levou com ele”. E eu liguei e ele realmente tinha o tampão. Ele me emprestou e eu medi, fotografei. Com tudo isso que contei, o que estou querendo dizer é que cada um daqueles detalhes que cito no livro, como “...a mala da Cidinha é cinza com debrum azul...”; porque a mala existe até hoje; é claro que ela está descorada, mas ela é cinza com debrum azul. Ela faz parte da decoração de um salão de beleza de alguém da família dela.

Era para estar em um museu.

Pois é! Então, todos esses detalhes que cito no livro foi tudo apurado. Não tem licença poética. Quando falo da cor, da medida...

E quando você fala das janelas, elas tinham chapas de ferro, as presas não tinham um horizonte?

Não, porque na frente da grade tinha uma chapa de ferro e da lateral elas conseguiam ver alguma coisa.

 

Não tinha entrada de luz na cela?

Entrava luz por essas laterais.

Luiza, poderíamos dizer que a torre era o purgatório, depois de elas terem vivido no inferno dos porões da tortura? Elas não eram torturadas fisicamente lá, não é? Era tortura psicológica, mas não física?

Mas podiam ser tiradas de lá como várias foram e levadas de novo para a tortura.

Para o Dops?

Ou para DOI-CODI, ou até para outros estados. A Dilma Rousseff foi levada para Juiz de Fora, foi torturadíssima em Juiz de Fora. Ela foi levada e trazida de volta para cá. Essa tortura dela em Juiz de Fora só veio a público, sei lá, há uns dez anos, por causa de um depoimento que encontraram em Belo Horizonte. Foi onde que ela começou a ter problemas na arcada dentária.

Lá dentro elas não eram torturadas fisicamente, mas podiam sair e ser torturadas?

E podiam sair e desaparecer.

Mesmo já sendo fichadas, com a prisão, digamos, legalizada?

Teve uma diretora de teatro chamada Heleny Guariba, que era uma mulher muito interessante, ela já estava lá há dez meses quando o juiz Nelson Guimarães mandou uma ordem de soltura para ela, e todo mundo estranhou muito porque, pelo comprometimento que a Heleny tinha com a resistência, a forma ativa, destemida que ela atuava, não fazia sentido ela ser libertada antes do julgamento, ela não tinha sido julgada; mas ela foi libertada. Dois meses depois, o mesmo juiz mandou prender, mas ela fica sabendo que saiu uma ordem de prisão, ela vai para o Rio e a última notícia que se tem de Heleny é na Casa da Morte (local de tortura em Petrópolis), em julho de 1971.

Então ela é desaparecida?

Ela é desaparecida. Então, cada uma reagiu como pôde ali dentro.

Havia diferenças entre as presas mais politizadas com outras que não eram tão politizadas? Pergunto isso porque no seu livro você cita uma passagem da Rosalba (Rosalba Almeida Moledo) que durante um rompante dela por causa dessa divisão, ela grita para as “mais politizadas” que elas não existiam. De certa forma elas não existiam mesmo ali.

É porque a Rosalba tinha condenação. Era nesse aspecto. E elas desconfiaram muito da Rosalba, porque a Rosalba trabalhava no Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), uma organização que juntava Fernando Henrique, vários intelectuais; e ela e mais três amigas ou duas amigas, quando eram estudantes, fizeram a panfletagem desastrosa lá em Santo André e foram presas, foram fichadas no DOPS, passaram uma noite; passaram até uma noite no Presídio Tiradentes, não na Torre, na parte da frente. E aquele processo foi rolando, foi rolando e anos depois foi marcado o julgamento e ela e as outras duas, porque uma terceira resolve sair do Brasil e é julgada à revelia; elas vão para o julgamento, inclusive marcando com amigos, inclusive uma intelectual conhecida, Elza Berquó (Pesquisadora); estava todo mundo preparado para sair e comemorar. E elas foram condenadas. Então elas estavam todas arrumadas para sair com o grupo de intelectuais; a Rosalba estava com um vestido vermelho de crochê, com colares e tal, e são levadas à noite para Tiradentes. E naquela época já não se prendia estudante mais, porque, em tese, ela foi presa por uma atitude de “estudante”; já existia um outro tipo de resistência. Por isso que existia, num primeiro momento, essa desconfiança: “Mas quem são essas meninas que chegaram aqui à noite tão arrumadas?” É por isso que a Rosalba faz esse desabafo. Mas depois essa situação se esclarece porque muitas se conheciam da militância; ou quando não se conheciam, sabiam da existência daquela pessoa, do papel daquela pessoa de determinada organização, às vezes só pelo codinome, mas sabiam.

 

A Dilma ficou quanto tempo na Torre?

Ela ficou quase três anos. Ela foi presa aqui em São Paulo, mas foi levada para o Rio, ela foi levada para Juiz de Fora. A Dilma, ela veio para São Paulo, porque tem um momento que a VAR Palmares (Vanguarda Popular Revolucionária), que era a organização que ela estava naquele momento, estava bem enfraquecida aqui em São Paulo. Ela é originalmente de Belo Horizonte, mas tempos antes, em Belo Horizonte, tinha acontecido várias quedas e esse pessoal de Belo Horizonte vai todo para o Rio; é o pessoal que eles chamam de “os deslocados”. E chega o momento que ela vem para São Paulo, mas para fazer a coordenação regional da VAR Palmares, aqui em São Paulo. Ela morava numa pensão, na região central, com a Maria Celeste Martins, que era uma geógrafa gaúcha, que era da mesma organização. Ela é presa aqui.

A Madre Maurina ficou pouco tempo na Torre?

Pouquíssimo. Eu pelo menos não encontrei nenhum registro de entrada e de saída dela. Mas é muito pouco tempo. Com a madre Maurina a gente tem que tomar cuidado, viu?

Por quê?

Porque pode ocorrer relato que seja memória reconstruída.

Por exemplo?

Nós estamos falando de coisas que aconteceram há muitos anos. A madre Maurina foi uma pessoa muito emblemática, como a Dilma também; então pode acontecer de alguém achar que ela ficou muito tempo e alguém achar que ela andava..., não sei! Eu já vi relatos assim que não são verdadeiros, que não batem.

 

Ela ficou presa, no total, cinco meses. A madre Maurina ficou presa em Ribeirão Preto, ali ela apanhou bastante, inclusive do delegado Fleury.

É, ali está tudo documentado por ela mesma.

De Ribeirão ela vai para a Cadeia de Cravinhos, fica lá junto com a Áurea Moretti, Leila Bosqueto, elas apanharam muito. Depois de um mês a Leila sai, e a madre Maurina e a Áurea são transferidas para o Presídio Tiradentes, na torre...

Antes elas passam pelo Dops.

Verdade, depois vai para Tiradentes e em poucos dias é levada para o Presídio Feminino de Tremembé, porque era administrado pelas freiras do Bom Pastor.

Ali que ela fica a maior parte do tempo.

Ela fica um mês.

Pois é, aqui (Presídio de Tiradentes, na torre) ela não fica três dias.

Luiza, você saberia por que tiraram a madre Maurina do Brasil? Tem uma versão de que foi tirada pela igreja porque estaria grávida.

Não, isso não existe. Eu já conversei com vários dirigentes envolvidos nesse sequestro (do cônsul japonês Nobuo Okuchi); já conversei com eles sobre isso. Esse negócio da gravidez ela sempre negou; e os dirigentes das organizações o que eles dizem é que o sequestro foi organizado muito rapidamente porque tinham que tirar o Mário Japa (Shizuo Osawa), que estava preso e sabia da localização (da área de treinamento da guerrilha) do Vale do Ribeira e estava sendo torturado; então eles tinham que tirar ele do Brasil, tinham que tirar ele da tortura rapidamente. E aí, na hora de fazer a lista, tanto que é pouca gente (cinco adultos e três crianças), eles resolvem colocar alguém vinculado à igreja para passar uma mensagem para o mundo, do que acontecia aqui no Brasil. Eles quiseram contemplar o mundo religioso.

 

Não foi a igreja que quis que ela saísse?

Não, de jeito nenhum. Foram as pessoas que fizeram a lista. Os dirigentes da organização.

 

E a madre Maurina morreu vítima do Alzheimer. Para mim é bem significativo porque, quando ela voltou definitivamente ao Brasil, em 1985, ela não pôde falar, como deveria, de tudo o que ela passou, do que sofreu na ditadura. Ao ser silenciada, pela congregação dela, perde-se uma importante memória.

O que é uma lástima, é uma lástima.

Luiza, onde você estava durante a ditadura?

Eu sou mineira, né? Eu estava em Minas e no finalzinho da ditadura eu estava em Varsóvia, na Polônia, porque eu ganhei uma bolsa de estudos. Eu tinha muita curiosidade para saber o que acontecia do outro lado do muro, porque existia o muro dividindo o mundo, né? Então eu pleiteei uma bolsa de estudos e eu estudei lá até 85. Em 1985, quando vai ter a redemocratização, eu resolvo voltar mesmo antes de terminar o curso.

 

Você tinha quantos anos durante o período da ditadura?

A Dilma é presa com 19, 20 anos. Então, quando ela tinha 19, eu tinha nove, mas eu já era ligada nessa coisa da ditadura. Eu me lembro bem que eu vi em Belo Horizonte um cartaz de procurados e eu perguntei para minha professora por que eu sabia que tinha alguma coisa com o namorado daquela professora. E eu perguntei que história era aquela de procurados? E ela foi muito esperta porque ela virou para mim e falou assim: “Ah, pensa no Tiradentes, como que ele era visto na época dele”. E não sei Angélica, se você sabe, que nós mineiros, desde que a gente começa a engatinhar, a gente vai ao Museu da Inconfidência, a gente ouve falar no Tiradentes. Então eu já tinha essa visão.

 

Como foi fazer esse livro A Torre?

O processo de produção do livro foi com muita pesquisa, uma junção de pesquisa com entrevista. E um recurso estimula o outro. Vou te contar uma história, por exemplo. Sempre que eu podia, eu tinha a documentação, quando eu chegava numa entrevista, eu já tinha um monte de material comigo. Quando eu fui entrevistar a Jovelina (Jovelina Tonello do Nascimento), uma operária, ela tinha tido uma vivência tanto anterior quanto posterior à prisão, muito rica e muito coerente. Ela inclusive, muito depois da prisão, ela vai fazer treinamento na China e tal. Ela era uma operária e ela falava, ela não tinha o problema de falar. Mas quando eu perguntei para ela de um ofício que ela escreveu em julho de 1970, quando o filho (Ernesto Carlos do Nascimento) já tinha sido banido do Brasil com a avó (Tercina Dias do Nascimento); ela faz um ofício pedindo de volta todos os objetos da casa dela que os homens da OBAN – Operação Bandeirante, tinham levado. Ela enumera tudo, da panela de pressão à cinta liga, o punhal dourado, um presente do Lamarca (Carlos Lamarca); e quando eu perguntei para ela desse ofício, ela não lembrava. Na hora que eu mostrei o papel para ela; não era a letra dela, a assinatura era dela, porque ela não tinha uma escolaridade assim forte, então ela fez um rascunho e uma companheira, inclusive a Dilma Rousseff, que passou a limpo para ela e ela assina. Quando eu entrevistei, ela já tinha estudado, já tinha feito enfermagem, então era uma outra pessoa. Quando ela viu aquilo, ela não só lembrou de toda a situação, como ela ia contando a história de cada objeto: “Ah, essa saia branca eu gostava de usar uma blusa azul de bolinha. Ah, essa conga do meu filho era xadrez”. Então olha, para você ver como que a memória pode vir à tona a partir de um estímulo documental. E tiveram vários casos no caminho contrário, da entrevista me levar a procurar determinados documentos para completar a história. Ou a entrevista deu uma pista que poderia ter acontecido determinada coisa e de fato aconteceu

 

E durante essas entrevistas, no momento de falar da tortura, principalmente a tortura sexual, era complicado tocar nesse assunto?

Eu não ficava perguntado isso. Essas entrevistas foram entrevistas muito longas. Como eu te disse, algumas pessoas entrevistei mais de uma vez, era entrevista de três, quatro, cinco horas, porque eu queria escrever sobre o período da torre, mas não tem jeito, a pessoa existiu antes e existiu depois da torre. Então ela vai contar, inclusive ela vai contar por que que ela chegou na torre? E aí aparecem os relatos de tortura, que são muito difíceis de você acompanhar; o entrevistador nessa hora tem que ter bastante sensibilidade, até mesmo para aguentar o silêncio e não atropelar o entrevistado, porque chega uma hora que ele precisa, sei lá, de 30 segundos de silêncio e dependendo da situação, o entrevistador não aguenta segurar o silêncio e fala, e acaba cortando o relato. O fundamental, na verdade, é você ser muito respeitoso nessas horas. Teve relato muito, muito, muito pesado e o meu foco não era a tortura, mas em alguns casos não tem como você apresentar a história sem contar, né?

 

Porque o foco era a torre.

Mas como que a pessoa chegou lá? Por que chegou arrebentada desse jeito, né?

 

Em meio a essa dor indizível, elas cantavam para receber as novas presas políticas da torre, e cantavam nas despedidas.

A música..., porque elas cantavam muito, sabe? Não é que elas cantavam no primeiro, segundo ano. Foi lá para a frente quando estavam mais organizadas, elas cantavam muito e teve uma época que inclusive tinha uma vitrola. Era uma vitrola pequena e elas tinham inclusive esse vinil. E então a música era uma coisa que estava muito presente ali. E essa despedida, a impressão que eu tenho é que é muito, muito emocionante. Todas foram muito emocionantes, exceto a da Heleny, que eu já te falei, porque ali estava todo mundo muito preocupado. Não estava todo mundo feliz que a Heleny estava saindo. Ninguém sabia o que ia acontecer com ela, mas era muito estranho libertarem ela daquele jeito. As mais antenadas viram que tinha alguma coisa muito errada. Mas no geral, as despedidas eram muito emocionantes, porque tinha essa escadaria, que eram duas assim em formato helicoidal, em cima, antes das celas, tinha uma espécie de mezanino curtinho, pequenininho, e elas ficavam ali, se postavam ou mezanino, ou nas escadas, e a pessoa descia para poder ir embora. Então era algo muito, muito forte. Tiveram casos, por exemplo, a Tercina e a Dulce Maia já tiveram a despedida com essa música, a Suíte do Pescador (de Dorival Caymmi), em junho de 1970, porque elas foram trocadas pelo embaixador alemão (Ehrenfried von Holleben) que tinha sido sequestrado pela guerrilha. A música fazia parte da vida delas, do cotidiano delas.

Em meio à dor, ainda conseguiam cantar.

Eu acho que era um bálsamo também.

Luiza, 60 anos depois da ditadura, da luta, por exemplo, dessas mulheres cuja histórias estão no seu livro A Torre; da luta contra a supressão de direitos básicos, como é ver pessoas pedirem a volta dos militares, que tanto mal fizeram ao país.

No decorrer da história do Brasil, sempre existiu essa dicotomia, porque pensa bem, 1964 existiu porque não existiu 1954; porque 1954 era para os militares terem tomado o poder, só não aconteceu isso porque o Getúlio Vargas se matou e o povo foi para a rua. E foi aquela reviravolta. Mas o que me causa espanto, na verdade, é a falta de discernimento sobre o que aconteceu, a dificuldade de se passar informação sobre esse período e como muitas vezes as informações são contaminadas ideologicamente. É uma coisa impressionante como nós conhecemos pouco a nossa história. Como o Brasil conhece pouco a própria história. E nesse momento, especificamente, eu fico muito feliz por causa do sucesso do filme Ainda Estou Aqui, que está arrastando multidões para o cinema e dá uma certa esperança de que um grupo maior de pessoas entenda um pouco melhor o que aconteceu naquele período. Mas também é assim, fico feliz, dá um pouco de esperança, mas também não tenho a ilusão que é todo mundo, porque o camarada que acha que a ditadura era boa, que repete isso, que aquele período era bom, ele não vai ver um filme como esse; ele não vai ler um livro e ele quando ouvir algum relato que tem uma visão diferente da dele, ele vai apagar simplesmente. A impressão que eu tenho é que a gente vai conviver muito tempo com esse problema, com essa violência também. E agora com a posse de Donald Trump, acho que essas forças de extrema-direita vão ficar ainda mais vivas. Elas vão ter muito mais recursos em todos os sentidos, vão ter muito mais apoio e elas vão se sentir engrandecida.

 

O fato de não ter sido feita justiça às vítimas da ditadura de 1964 a 1985; o fato de que os militares, e civis, que financiaram, planejaram, torturaram, mataram, não terem sido punidos, presos, explica essa democracia brasileira sempre nessa corda-bamba?

É por causa da impunidade, porque a tortura continua existindo nos presídios de hoje. A morte da população, principalmente dos meninos, dos rapazes negros e pobres, é uma quantidade absurda. O tratamento que a polícia dá para as pessoas, como que é diferente uns dos outros. E o próprio secretário de segurança de São Paulo, Derrite (Guilherme Muraro Derrite) comentou, eu não me lembraria exatamente das palavras que ele usou, mas que o que ele quis dizer foi que é muito normal que o policial militar, no caso, tenha uma postura diferente com uma pessoa que mora nos Jardins com uma pessoa que mora numa periferia.

 

Você acha que na tortura, que como você disse, continua, mas especificamente na ditadura, havia machismo?

A Dulce Maia falava muito isso, que eles tinham um ódio pelo fato dela ser uma mulher branca, da elite e que estava metida com luta armada. Ela achava que tinha uma raiva muito específica por ser mulher e em vários casos você percebe isso, o tipo de tortura que se fazia, principalmente nos órgãos sexuais. Mas a gente tem que pensar que os torturadores eram cruéis com todo mundo, não era só com as mulheres, com os homens também, principalmente quando eles achavam que aquela pessoa tinha uma informação que eles precisavam ou que aquela pessoa, pior ainda, que aquela pessoa não deveria viver. Teve caso de empalamento de um homem, no Rio de Janeiro, dirigente do PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário), com um cabo de vassoura com pregos. Ele morre por causa disso. Talvez alguns deles, sei lá, visavam mais as mulheres, tinham mais raiva de mulheres. A impunidade faz com que o policial hoje, por exemplo, não pense duas vezes quando ele quer agredir alguém. Seja em público, seja dentro de uma cadeia. Porque se tivesse tido punição, eu acredito que haveria desvios ainda assim, porque isso é da natureza de quem é cruel; mas não haveria nesse nível que nós vivemos hoje.

 

Você tem medo do retrocesso?

Nos últimos anos, o que ficou claro é que as coisas podem piorar. Tem jeito de ficar pior do que está, porque em 2005, por exemplo, mesmo quando teve aquele escândalo do mensalão, quem imaginaria que ia ter um governo Bolsonaro nos termos que teve? Quem imaginaria que pessoas se vestiriam de verde, amarelo, iriam para a porta dos quartéis pedindo a volta da ditadura? Então, mais uma vez, por isso que eu fico feliz com o filme Ainda Estou Aqui, porque quanto mais pessoas souberem, mais profundamente, tiverem informação sobre o que aconteceu nesse país, eu acho que diminuiu o risco de algo similar voltar a acontecer. Eu acho difícil, mas como eu te disse, não acho impossível, porque eu nunca imaginaria que nós teríamos episódios como a gente está testemunhando. E todo dia é alguma uma coisa. Por exemplo: ficou evidente que existia um plano para matar o presidente e o vice-presidente eleitos e um ministro do Supremo Tribunal Federal.

 

Eu tive a sensação de que não houve indignação, mesmo, com esse caso, como se fosse algo corriqueiro.

Mas os grandes jornais hoje já não têm a influência, o poder que já tiveram. Hoje são as redes que mobilizam as pessoas. E, convenhamos, a extrema-direita é muito boa nas redes. Ela está a frente disso. Então, a gente está vivendo uma situação difícil. Não duvido nada se amanhã ou depois acontecer uma outra coisa absurda também, que a gente não imaginava, porque apesar de todas aquelas articulações por golpe que vieram à tona, nós não imaginávamos que ia chegar a ponto de ter um planejamento para matar.

É assustador.

Com certeza!

Série “Filhos do Brasil” - revista Brasileiros

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